O ano de 2009 foi marcado pelo bicentenário do nascimento de Charles Darwin e pelo aniversário de 150 anos de A origem das espécies (ou, no seu título completo, A origem das espécies: a preservação de raças favorecidas na luta pela vida), a obra magna do ilustre naturalista vitoriano, que, desde o seu lançamento, tem sido fonte de debates e controvérsias, tanto no âmbito da comunidade científica quanto fora dela. No rastro destas comemorações, dezenas de livros foram publicados mundo afora, resgatando Darwin e sua teoria. Um deles, em particular, destaca-se por, com base em ampla pesquisa documental e fontes diversas, trazer a público uma face até então desconhecida (ou pouco conhecida) da vida de Charles Darwin. Trata-se do livro escrito por Adrian Desmond e James Moore, Darwin’s Sacred Cause, lançado em 2008, e publicado no Brasil, em 2009, pela Editora Record, sob o título A causa sagrada de Darwin.
A obra de Adrian Desmond e James Moore possibilita um novo olhar sobre Darwin e a teoria da evolução. Nela surge uma figura humana diferente daquela que é superficialmente captada, pela maioria de nós, na fotografia de um homem idoso, barba e cabelos brancos, com ares de conservador, que se tornou um ícone, a exemplo da foto de Albert Einstein com a língua de fora, ilustrando os mais diversos tipos de objetos e peças publicitárias envolvendo ciência.
Historicamente é possível a contextualização de que, quando Charles Darwin, iniciou de fato a sua carreira de naturalista, embarcando na famosa viagem de circunavegação do navio Beagle (1831-1836), estava no auge as discussões antiescravagistas na Inglaterra. Darwin, diferentemente do que se conhecia até então, não ficou alheio a elas e nem foi insensível à causa, como a sua imagem de conservador deixa transparecer. Charles Darwin foi um cientista obstinado, que, com método de trabalho, praticou a boa ciência, dedicando a vida na formalização da teoria da evolução das espécies.
A origem das espécies, publicada em 1859, foi e tem sido atacada por quem nela percebe os seus interesses contrariados. Destoando da prática corrente na época, Darwin publicou o seu livro em inglês e não em latim (idioma culto de então). Com isso ampliou o público leitor para além das fronteiras dos eruditos daquele tempo, popularizando suas ideias em sucessivas edições do livro, que de pronto eram esgotadas. Não foram poucos os esforços dos criacionistas para desmoralizá-lo e as tentativas de sujar sua reputação por parte de rivais e desafetos. Adrian Desmond e James Moore, em essência, não fizeram outra coisa que restaurar o humanismo do cientista Charles Darwin.
A escravidão indignava Darwin. E, com a sua revolucionária teoria, atribuindo um ancestral comum a todas as formas de vida, contrariou os apologistas da escravidão, quando diziam que negros e brancos se originaram como espécies separadas, sendo, evidentemente, na visão deles, os brancos superiores. Os criacionistas também acreditavam que o homem era superior às outras espécies, sentindo-se, por isso, contrariados. Darwin deu a todos, negros, brancos, animais e plantas, uma origem comum, libertando-nos das amarras criacionistas.
A evolução acabou com Adão e colocou os macacos na nossa árvore genealógica, especialmente depois de 1871, quando, com a publicação de A origem do homem e a seleção sexual, Darwin finalmente aplicou o conceito da evolução aos seres humanos (embora isso estivesse implícito em A origem das espécies, de 1859). Fazendo isso, Charles Darwin derrubou Deus e bestializou a humanidade (entenda-se a raça branca, na visão dos seus contemporâneos). Seguiu a ciência e, apesar de todo o seu cristianismo, renunciou a religião, dando início ao mundo laico moderno. Não foi por outra razão que esta obra é considerada por muitos como imoral e um ato contra Deus.
Também não se pode negar que a teoria de Darwin foi usada, em alguns lugares (da Albânia ao Alabama, passando por Ruanda), para justificar o conflito racial e a limpeza étnica, em que as raças favorecidas sobreviveriam à sangrenta luta darwinista apregoada pela seleção natural.
Charles Darwin ainda espera por um acerto de contas, pois como afirmou Stephen Jay Gould nós não somos o resultado de uma tendência natural rumo à perfeição na escala evolutiva, mas o resultado do acaso ou, melhor dizendo, da contingência.
Coluna originalmente publicada em 18/03/2010.
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