OPINIÃO

O poeta e a ética do conveniente

Por
· 4 min de leitura
Você prefere ouvir essa matéria?
A- A+

Vive-se, mesmo sem saber de algumas coisas. Nem melhor e nem pior, muitas vezes. Por exemplo: física quântica ou numerologia se preferirem. Muitos tentaram e, com certeza, poucos conseguiram entender o significado “prático” dos números quânticos, por mais que o professor de físico-química se esmerasse em explicar a teoria de Louis De Broglie sobre o “dualismo onda/partícula”, o princípio da incerteza de Heinzemberg e os cálculos probabilísticos de Schroedinger para localizar os elétrons. É o caso, também, de ética e de moral. Algumas pessoas, mesmo alheias às suas definições acadêmicas, seguramente vivem em plena conformidade com os seus preceitos. Outras não, apesar de doutas no assunto.

Um dos princípios básicos da condição humana é a liberdade. A capacidade de dizer sim ou não, de querer ou não querer, por mais que a situação pareça programada biológica ou culturalmente. Em essência, mesmo não sendo livres para escolher o que nos acontece, somos livres para reagir de diferentes modos. Também está implícito no conceito de liberdade que ser livre para tentar não significa necessariamente conseguir, pois não somos onipotentes e nem tudo depende apenas da nossa vontade. Realmente, parece mais fácil estar ciente daquilo que limita a nossa liberdade do que da própria liberdade. Mais fácil e mais cômodo, pois se não somos livres também não somos os culpados de nada que nos acontece.

É em função da liberdade que saber viver não é uma coisa simples. Muitas vezes, é preciso saber lidar com os opostos. Acima de tudo, é necessário ter consciência que na vida há coisas que nos convêm e outras que não nos convêm. As circunstâncias podem até nos obrigar a escolher entre duas opções que não escolhemos. Exemplo típico, no segundo turno de uma eleição.

As pessoas, em geral, não passam a vida pensando no que convém ou não convém fazer. Na maioria das vezes, se faz as coisas por ordens, a mando de alguém, por costume, em função do hábito de se comportar assim, ou por capricho, simplesmente porque deu vontade de fazer. E uma ação não é necessariamente boa ou conveniente só por ser decorrente de uma ordem, de um costume ou de um capricho.

A moral trata dos costumes, deveres e modo de proceder dos homens para com os outros homens. Coisas que costumamos aceitar como válidas sem maiores questionamentos. É a ética, todavia, por se ocupar da liberdade propriamente, que possibilita a reflexão sobre por que as consideramos válidas e também permite a comparação com outras “morais” de pessoas diferentes.

Os quatro princípios da moral, conforme Lichtenberg, são: (1) O filosófico: faça o bem pelo próprio bem; (2) O religioso: faça o bem porque é a vontade de Deus; (3) O humano: faça o bem porque seu bem-estar requer e (4) O político: faça o bem porque exige a sociedade da qual você faz parte.

É a ética que cuida do uso desta liberdade. Razão pela qual o professor Fernando Savater, catedrático de ética na Universidade do País Basco (Espanha), cita o “faça o que quiser” como lema fundamental da ética, significando a dispensa de tudo que possa dirigir de fora a vontade do indivíduo, tipo ordens e/ou costumes. É claro que esse “faça o que quiser”, não pode ser confundido com “faça a primeira coisa que der vontade”, motivado apenas por caprichos. Também é usando a ética que se pode perceber um pouco mais além daquilo que nos dizem, possibilitando compreender porque certos comportamentos são convenientes e outros não. Serve para melhorar a nós mesmos, permitindo escolher o que mais nos convém e viver o melhor possível. Não para tentar corrigir os outros. A contrapartida inevitável da liberdade é a responsabilidade. Por isso, eticamente, o “irresistível” não passa de uma superstição. E o remorso nada mais é que a insatisfação que sentimos quanto a nós mesmos quando empregamos mal a liberdade.

Não são raras as vezes que sintomas de imbecilidade, dos quais todos somos tomados em maior ou menor grau, impedem o pleno exercício da liberdade. Por razões etimológicas, imbecil é aquele que precisa de bengala ou bastão para caminhar. Ou seja, anda apoiado em alguma coisa. Fernando Savater, no livro “Ética para meu filho”, define alguns tipos de imbecis morais, que, em muitas ocasiões, podemos nos incluir sem vacilar, ou nos deparamos com este comportamento em pessoas de nossas relações. São eles: (1) o que diz que para ele tudo dá na mesma; (2) o que quer tudo; (3) o que não sabe o que quer e nem se dá ao trabalho de averiguar; (4) o que sabe o que quer, mas faz pouca força para conseguir e (5) o afoito, que confunde vida boa com mera excitação. O contrário de tudo isto é ter claro que nem tudo dá na mesma, atentar para o que estamos fazendo e o que queremos, no mínimo ter bom gosto moral; repugnar-se com a mentira por exemplo e renunciar à dissimulação de responsabilidade pelos nossos atos.

E em se tratando de relacionamentos humanos, a melhor escolha só é possível de ser feita quando colocamo-nos no lugar do outro. Uma boa descrição deste ponto podemos encontrar nos versos da música “Barbi Superestar”, do compositor e cantor espanhol Joaquin Sabina, especialmente na parte onde a protagonista da letra pergunta:

-“Dónde está la canción, que, me hiciste, quando eras poeta?”

E a resposta eticamente conveniente:

-“Terminaba tan triste que nunca la pude empezar”.

Agora, cuidado com esse negócio de se pôr no lugar do outro. Pois, conforme lembrou Bernard Shaw: “Nem sempre faça aos outros o que você deseja que lhe façam. Eles podem ter gostos diferentes.”

(Coluna originalmente publicada em 10/04/2000)

SUGESTÃO DO COLUNISTA: O livro “Ah! Essa estranha instituição chamada ciência” está disponível em versão Kindle na Amazon: https://www.amazon.com.br/estranha-instituição-chamada-ciência-Borgelatria-ebook/dp/B09Q25Q8H8

Gostou? Compartilhe