OPINIÃO

O poema de Borges que Borges nunca escreveu

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Antes mesmo que as redes sociais se transformassem, para o delírio dos incautos, no território fértil onde vicejam textos de qualidade literária duvidosa, porém, supostamente, assinados por nomes consagrados no mundo das letras; essa abominável prática já existia. E, por mais incrível que isso possa parecer, levou intelectuais da estatura do economista Roberto Campos e do escritor Moacyr Scliar a caírem nesse tipo de armadilha e ajudarem a difundir algo falso como sendo verdadeiro. Esse é o caso do poema “Instantes”, cuja autoria é falsamente atribuída a Jorge Luis Borges, que ganhou notoriedade em vários países do mundo, com destaque no Brasil.

Em nosso País, “Instantes”, possivelmente, chegou por obra e graça do escritor Moacyr Scliar, em 1987. Segundo relato do próprio Scliar, a história começou naquele ano, quando ele esteve na cidade de Rosario, Argentina, para participar de um encontro de saúde pública. Uma cópia do aludido poema foi distribuída aos participantes desse evento. De volta a Porto Alegre, traduziu os versos para o português e publicou o poema, que supostamente levava a assinatura de Borges, no jornal Zero Hora. A repercussão foi imediata. Esses versos se multiplicaram por todos os lados. Apesar de deveras piegas, o poema foi usado sem qualquer constrangimento em discursos públicos, epígrafes de livros, mensagens natalinas, cartazes de autoajuda (eu me lembro de ter visto um desses, ornamentando a propaganda de um laboratório de medicamentos, afixado na sala de espera da antiga sede da Rádio Uirapuru, no começo dos anos 1990) e citado, como se de Borges fosse, por intelectuais de escol, caso do economista Roberto Campos.

Nesse meio tempo, Scliar tomou conhecimento, por intermédio da viúva de Borges, Maria Kodama, durante um café da manhã, em Guadalajara, por ocasião da entrega do prêmio Juan Rulfo a Nélida Piñon, que aquele poema nunca fora escrito por Borges, mas sim por uma escritora americana chamada Nadine Stair. A história havia começado, em 1986, quando esse poema foi publicado, em espanhol, na revista Uno Mismo, ao lado de uma caricatura de Borges. O locutor de uma rádio de Buenos Aires leu o poema no ar, supôs, apressadamente, que era de Borges, e o resto é lenda. Moacyr Scliar tratou de corrigir o erro que havia ajudado a perpetrar, na própria Zero Hora e em coluna na Folha de São Paulo. Mas, tudo indica, sem maiores êxitos, pois, até hoje, muita gente ainda acha que aqueles versos são de Borges.

A tentação de se deixar levar pelos versos de “Instantes”, não obstante a qualidade literária duvidosa, é maior do que o senso crítico. Afinal, quando se está à beira da morte, quem não gostaria de uma segunda chance? Um excerto de “Instantes”, para rememorar: “Se eu pudesse viver novamente a minha vida, / na próxima trataria de cometer mais erros. / Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais. /Seria mais tolo ainda do que tenho sido; / (...) / Se eu pudesse voltar a viver, / começaria a andar descalço no começo da primavera / e continuaria assim até o fim do outono. / Daria mais voltas na minha rua, / contemplaria mais amanheceres / e brincaria com mais crianças, / se tivesse outra vez uma vida pela frente. / Mas, já viram, tenho 85 anos / e sei que estou morrendo”.

Versos poucos palatáveis para gostos literários minimamente apurados. No final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, na era Internet, algo parecido se repetiu com “La Marioneta”, a falsa despedida de Gabriel García Márquez. Desta feita, apresentações Power Points, musicadas, eram distribuídas à exaustão via e-mail. No mesmo diapasão de “Instantes”, “La Marioneta” dava o tom: “Se, por um instante, Deus se esquecesse de que sou uma marionete de trapo e me presenteasse com um pedaço de vida, possivelmente não diria tudo o que penso, mas, certamente, pensaria tudo o que digo. /Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam. / Dormiria pouco, sonharia mais, pois sei que a cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. / Andaria quando os demais parassem, acordaria quando os outros dormem. / Escutaria quando os outros falassem e gozaria um bom sorvete de chocolate. (...) / Aos velhos ensinaria que a morte não chega com a velhice, mas com o esquecimento. Tantas coisas aprendi com vocês, os homens.../ Aprendi que todo mundo quer viver no cimo da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a escarpa. / São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas, finalmente, não poderão servir muito porque quando me olharem dentro dessa maleta, infelizmente estarei morrendo”. Versos improváveis de terem sido escritos por Gabo. E, e fato, nunca foram do famoso autor de “Cem anos de solidão”. Mais tarde, se descobriria que foram escritos por Johnny Welch, um ventríloquo que trabalhava no México, para o seu boneco de nome Mofles.

Outro caso muito popularizado de “falsa autoria”, nos tempos pré-internet, é o poema de Eduardo Alves da Costa, “No Caminho, com Maiakovski”, que muitos atribuem a Brecht ou ao próprio Maiakovski. Os versos mais conhecidos são esses: “Tu sabes, / conheces melhor do que eu / a velha história. / Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim. / E não dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem: / pisam as flores, / matam nosso cão, / e não dizemos nada. / Até que um dia / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a luz, e, / conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. / E já não podemos dizer nada”.

A diferença, nesse caso, é que os versos de Eduardo Alves da Costa são, literariamente, bons, quando comparados com os de “Instantes” e de “La Marioneta”. Eu lembro de panfletos mimeografados, produzidos pelo movimento estudantil da UFRGS, no começo dos anos 1980, com esses versos assinados como se fossem de Maiakovski.

Para encerrar essa história, “Instantes” não seria nem de Jorge Luis Borges e nem de Nadine Stairs. Os versos originais, com algumas modificações, seriam do escritor e humorista americano Don Herold (1889-1966), publicados no Reader's Digest, edição de outubro de 1953. Não fui conferir essa informação. Divirtam-se!

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