OPINIÃO

Hamlet e os relutantes

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Quem poderia imaginar que entre aqueles que relutam tomar vacinas, seja contra a Covid-19 ou qualquer outra doença, e os que hesitam acreditar em previsões climáticas, há mais coisas em comum, parafraseando Shakespeare (Hamlet, Ato 1, Cena V), do que supõe a “nossa” vã filosofia. A existência dessa relação é defendida por Michael H. Glantz e Gregory E. Pierce, pesquisadores da Universidade do Colorado, Boulder, EUA, em artigo publicado, em 2021, no periódico científico International Journal of Disaster Risk Science (https://doi.org/10.1007/s13753-021-00353-7). Entender esse fenômeno, que relaciona relutância em tomar vacinas e dificuldade para dar crédito às previsões climáticas, é o nosso intento.

Está enganado quem supor que o sentimento antivacinas no mundo surgiu com a pandemia da Covid-19. Ainda que, por medo do novo e por razões ideológicas, esse sentimento tenha recrudescido em países com tradição vacinal consolidada, caso do Brasil. Para atestar, há que se considerar que, antes do surgimento do vírus SARS-CoV-2, em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, e da decretação da pandemia da Covid-19, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em meados de março de 2020, dando início à corrida para o desenvolvimento de vacinas contra a nova doença, a OMS já se preocupava com o crescimento desse movimento no mundo. Tanto é assim que, no início da segunda década do século XXI (em 2012), foi constituído um grupo de trabalho para entender o que estava acontecendo, mais conhecido pela sigla SAGE (Strategic Advisory Group of Experts), que definiu, no seu relatório de 2014, este tipo de atitude da população, como um fenômeno social, tão antigo quanto a reação que houve quando surgiu a vacina para combater a varíola, no final do século XVIII. O fenômeno foi chamado, por esse grupo de especialistas, de Vaccine Hesitancy (Hesitação Vacinal/Relutância Vacinal).

A hesitação vacinal, formalmente definida no relatório SAGE, refere-se ao atraso em aceitar ou, no limite, refutar totalmente tomar a vacina, apesar da sua disponibilidade nos serviços de saúde. Essa relutância é influenciada por diversos fatores, tais como, complacência com a doença (não perceber a necessidade da vacina), conveniência (a dificuldade de acesso justifica a comodidade. Distribuir vacinas equitativamente no mundo é mais fácil falar do que fazer) e confiança (baixo nível de confiança na vacina ou nos provedores). Na prática, a atitude das pessoas, em relação a uma nova vacina, a exemplo das produzidas para combater a Covid-19, varia em uma escala com graduação que vai, desde confiança plena no imunizante, até o outro extremo, de rejeição total. Nesse continuo, podem se enquadrar os que aceitam tomar a vacina imediatamente, aqueles que, por cautela, esperam um tempo para ver o que aconteceu com os vacinados, até os que, não importa a condição, jamais vão aceitar tomar a vacina. Razões alegadas não faltam: preocupação com efeitos colaterais, temor de respostas alérgicas, dúvida sobre a efetividade da vacina, preferência por adquirir imunidade por meio da infeção natural, medo de agulhas e, por ser jovem e saudável, não temer pegar a doença.

Isso posto, seria comparável a reação a uma campanha vacinal de combate a uma emergência epidêmica, assunto vivenciado em tempos recentes no combate à pandemia da Covid-19, com atitudes de aceitação e reação estratégica e/ou tática, por exemplo, diante da previsão de um El Niño forte, caso do evento atual (2023/2024), com potencial de causar anomalias climáticas de grandes impactos? Segundo Michael Glantz e Gregory Pierce, no artigo que foi citado no parágrafo de abertura dessa coluna, definitivamente, SIM.

A dificuldade para se levar a sério e, mais ainda, tomar atitudes assertivas (estratégicas e táticas) diante de uma previsão climática relacionada com El Niño, obedece à mesma lógica dos 3Cs da hesitação vacinal (complacência, conveniência e confiança). A complacência com El Niño grassa, pois, afinal, somos benevolentes e já vivemos essa história antes; não é simples, deixar a conveniência da comodidade da zona de conforto e ousar fazer diferente (até por falta de acesso a meios para tal); além de que, muita gente, por não saber interpretar uma previsão probabilística e incorporá-la num processo de gestão integrada de riscos, costuma não confiar em previsões de longo prazo (não raro, inclusive, dando, equivocadamente, voz a quem, sabe-se lá por qual razão, busca desacreditar previsões de clima e de mudança do clima).

Ou seja, a relutância contra vacinas e contra previsões climáticas/mudança do clima, por se enquadrar como fenômeno social, clama por soluções que vão além das meramente tecnológicas. Quando se vê médico negando vacina e climatologista desacreditando previsões climáticas, somente Shakespeare para interpretar o que está acontecendo nesse mundo!

SUGESTÃO DO COLUNISTA: O livro “Ah! Essa estranha instituição chamada ciência” está disponível em versão Kindle na Amazon: https://www.amazon.com.br/estranha-instituição-chamada-ciência-Borgelatria-ebook/dp/B09Q25Q8H8

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