Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), apesar de muita gente imaginar o contrário, não foi o idealizador da Academia Brasileira de Letras; porém não restam dúvidas que, se ele não tivesse abraçado a causa, após ter sido aclamado o seu primeiro presidente, a iniciativa de criação de uma academia literária nacional, nos moldes da Academia Francesa, dificilmente teria vingado naquele 20 de julho de 1897.
A respeitabilidade que gozava Machado de Assis, no idos tempos do final do século XIX e começo do século XX, foi fundamental para a consolidação do sodalício das letras pátrias. Uma época marcada, com o fim do período imperial e inicio da era republicana, pela remodelação da cidade do Rio de Janeiro e pela decadência, na literatura, da glamorização da boêmia, cujos impactos nas letras nacionais foram bem retratados por Brito Broca, no livro “A vida literária no Brasil – 1900”, publicado em 1956, pelo Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura da época. Broca adotou a acepção clássica de André Billy, usada na coleção que dirigiu na França, “Historie de la Vie Lettéraire”, para diferenciar vida literária de literatura. A primeira referindo-se à literatura estudada em termos de vida social e a segunda em termos de estilística. E é nesse contexto de “vida literária”, no Brasil dos anos 1900, período que é delimitado por muitos como o intervalo entre a última década do século XIX e a Primeira Guerra Mundial, que o papel de Machado de Assis, não sem algumas controvérsias, na época e posteriormente, se sobressaiu para a consolidação da literatura nacional, a partir da Academia Brasileira de Letras.
Machado de Assis, seguindo padrões de moralidade da época, é acusado de ter vetado a entrada de alguns escritores boêmios, especialmente os apreciadores de copiosas doses etílicas, na novel Academia Brasileira de Letras, ainda que alguns tenham escapado desse crivo de valor, até por terem mudado o estilo de vida (Aluísio Azevedo, Coelho Neto e Olavo Bilac, por exemplo). Também teria, em 1905, quando da morte de José do Patrocínio, um dos boêmios que escapara da sanha moralista de Machado, se empenhado pessoalmente na “escandalosa” eleição de Mário de Alencar para a vaga aberta. Concorreram à cadeira deixada por “Zé do Pato”, o romancista Domingos Olímpio, consagrado por “Luzia-Homem” e outras obras de sucesso, e o novel poeta Mário de Alencar, cuja maior credencial era ser filho de José de Alencar. Intelectualmente e por livros publicados, Domingos Olímpio tinha mais méritos do que Mário de Alencar. Mas, por obra e graça de Machado de Assis, que se empenhou pessoalmente na arregimentação dos correligionários, e com o beneplácito do Barão do Rio Branco, Mário de Alencar, com destacada votação, foi o escolhido. Há quem diga que, nesse episódio, com algumas exceções, está a gênese do modelo de eleição da ABL que vigora até os tempos atuais.
Apesar de contar com admiradores incontestes, que colocavam Machado de Assis, pelas suas virtudes pessoais e qualidades literárias, numa condição de “quase Deus”, ele também sofreu ataques desmesurados. O critico literário Silvio Romero, em opúsculo de 1882, sobre o Naturalismo na literatura, rotulou Machado de Assis de “capacho de todos os governos”. O mesmo Silvio Romero, em 1897, reconsiderou a ofensa gravíssima que fizera, embora ainda mantivesse algumas restrições aos propalados méritos machadianos. Não obstante, essas críticas impiedosas, a fidalguia de Machado de Assis se sobressaiu, na convivência com Silvio Romero na Academia Brasileira de Letras.
As mais atrozes críticas a Machado de Assis surgiriam post-mortem. Foi quando, mal passado o período de exaltação à sua memória, apareceram as acusações, que soam hoje ridículas e injustas, sobre a “indiferença” de Machado pela sorte da raça a que pertencia, acusando-o de alienação relativa à escravidão e por não preocupar com o destino dos seus irmãos de cor, uma vez que, na sua obra, não mereceram atenção especial. Evidentemente, levando-se em consideração que, pelos critérios atuais, Machado de Assis, filho de pai preto e mãe branca, seria afrodescendente, apesar de, no seu atestado de óbito, constar “cor branca”.
Injustiça com a memória de Machado de Assis, quando disparates dessa natureza, de tempos em tempos, são retomados. A partir da sua fase realista, inaugurada em 1881, com o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, surgiu nessa e em obras posteriores, um Machado que, com sutileza peculiar, tece uma crítica social impecável, com profundidade psicológica, à burguesia brasileira do final do século XIX e sua hipocrisia e falsos valores. Ou que se imagina que ele faz quando, no capitulo final, coloca na boca de um canalha como Brás Cubas, a frase em que o personagem diz que graças a Deus nunca precisou comprar o pão com o suor de seu rosto.
Machado de Assis precisa, cada vez mais, ser visto como um grande crítico da estrutura social brasileira, incluindo-se a escravidão e os favorecimentos de ocasião. Há que se reler Machado com outro olhar!
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