OPINIÃO

De Coimbra a Itaguaí

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De Coimbra, onde Simão Bacamarte cumpriu a sua formação em Medicina, tal qual a maioria dos “filhos da nobreza da terra Brasilis” fazia, até a chegada da Corte, em 1808, a Itaguaí, cidade escolhida para albergar a Casa Verde e sua sui generis experiência sobre as causas da loucura e a busca do remédio universal para a doença, Machado de Assis, com a sua peculiar ironia, nos conduz por uma viagem que perpassa por preconceitos sociais maldisfarçados, em que, o cientificismo dos séculos XVIII e XIX, é usado para justificar a exclusão social e política de uma parcela da população brasileira.

O alienista, o conto/novela que abre a coletânea “Papeis avulsos”, publicada em 1882, a exemplo de boa parte da obra machadiana e em conformidade com a tradição literária da época, foi, originalmente, escrito, por partes, na imprensa do Rio de Janeiro. Especificamente, no caso de O alienista, na revista A Estação, que, tudo indica, uma boa parcela do que saia nas páginas desse magazine, voltada à educação e à saúde das mulheres, conforme tese defendida por Daniela Magalhães da Silveira no livro Fábrica de Contos – Ciência e Literatura em Machado de Assis (Editora Unicamp, 2010), teria se prestado para inspirar o Bruxo do Cosme Velho na construção do enredo subliminar dessa obra.

Machado de Assis, irônico e sarcástico como nunca, porém sem deixar de ser sofisticado, usa, em O alienista, toda a sua verve de escritor de escol para “criticar” o naturalismo e as suas pretensões científicas descabidas e pedantes, especialmente na composição da personalidade do médico e cientista Simão Bacamarte. Mais do que atacar o discurso cientificista do Dr. Bacamarte e suas verdades absolutas, que se prestava para justificar tudo e invalidar qualquer argumento que confrontasse a sua opinião, há que se perceber a crítica velada de Machado aos valores da sociedade brasileira oitocentista, seus preconceitos, suas políticas de exclusão social e de gênero e a disputa pelo poder, em uma Itaguaí transformada num grande laboratório e seus habitantes em cobaias experimentais.

É memorável a descrição da escolha de Dona Evarista para esposa do Dr. Simão Bacamarte. Viúva de um juiz de fora, tinha 25 anos, “não era bonita nem simpática”, mas reunia condições fisiológicas e anatômicas para gerar filhos robustos, saudáveis e inteligentes. Inclusive, é destacado que Dona Evarista era “mal composta de feições”. Todavia, longe de lastimar o fato, o Dr. Bacamarte agradeceu a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte. Mas, para o infortúnio do Dr. Bacamarte, Dona Evarista era estéril. Essa passagem de O alienista, por exemplo, não poderia ser entendida como uma crítica velada de Machado ao papel que a sociedade da época reservava às mulheres?

Há que se considerar, ainda, que O alienista foi escrito em época de acirradas discussões sobre a medicalização da loucura. Quando aos chamados “doentes furiosos” era reservada a clausura doméstica, até a morte, e aos “mansos” era permitido que vagassem pelas ruas. A luta do Dr. Bacamarte para a construção da Casa Verde, cuja origem dos recursos parece soar ridícula, ou nem tanto, ao se ter por base os impostos cobrados sobre os penachos usados pelos cavalos que acompanhassem enterros. Além da frase, inspirada na sua admiração por autores árabes, colocada no frontispício da Casa Verde, venerando os doidos porque “Alá lhes tira o juízo para que não pequem”. As internações arbitrárias, ao bel-prazer do Dr. Bacamarte, dos moradores de Itaguaí, inclusive de Dona Evarista, quando ela ficou em dúvida sobre a escolha entre dois colares, levaria à Revolta dos Canjicas, comandada pelo barbeiro Porfírio (apelidado de Canjica) e com apoio do Padre Lopes, representando o confronto ciência versus religião, que, como Machado nunca é simplista, permite, para alguns, que seja feita analogia com a Revolução Francesa, em que Itaguaí seria Paris e a Casa Verde a Bastilha.

O desfecho de O Alienista é assaz conhecido. Simão Bacamarte se rende às evidências de, possivelmente, nunca ter existido outro louco em Itaguaí além dele próprio (boato atribuído ao Padre Lopes). Recolheu-se à Casa Verde, pois, argumentou que a questão era científica, uma vez que reunia nele a teoria e a prática de uma nova doutrina, entregando-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dezessete meses depois morreu e foi enterrado com pompa e solenidade rara!

SUGESTÃO DO COLUNISTA: O livro “Ah! Essa estranha instituição chamada ciência” está disponível em versão Kindle na Amazon: https://www.amazon.com.br/estranha-instituição-chamada-ciência-Borgelatria-ebook/dp/B09Q25Q8H8

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