OPINIÃO

A biblioteca de Machado de Assis – Parte 1

Por
· 3 min de leitura
Você prefere ouvir essa matéria?
A- A+

Quer seja o acervo de um escritor da estatura intelectual de Joaquim Maria Machado de Assis ou as obras reunidas por um humilde aficionado por livros como Valdelírio Nunes de Souza (o papeleiro Chicão), invariavelmente, quando morre o dono, o destino das bibliotecas pessoais não costuma ser dos melhores. As obras, colecionadas com esmero e dedicação ao longo de uma vida, não raro, acabam dispersas, seja por doações de exemplares a alguém interessado, vendas da coleção integral para livrarias especializadas em comercialização de livros usados (os sebos) ou, quando não, colocadas à disposição de empresas recicladoras de papel (apenas um eufemismo para jogadas no lixo).

A história da biblioteca pessoal de Machado de Assis, considerado, por muitos, o mais genial dos escritores brasileiros, é emblemática. Quando da sua morte, em 29 de setembro de 1908, o bruxo do Cosme Velho havia deixado, por testamento, firmado em 31 de maio de 1906, todos os seus bens, entre os quais a sua biblioteca, à “menina Laura”, filha da sobrinha da sua saudosa esposa Carolina Augusta de Novaes Machado de Assis. Mas, segundo consta, o escritor, na antevéspera da sua morte, havia verbalizado, perante testemunhas, uma mudança no testamento, destinando a sua memória literária e os livros da sua biblioteca pessoal à Academia Brasileira de Letras (ABL). Começava um imbróglio com a família da herdeira, que levaria 56 anos, até que o acervo do escritor (ou o que restou dele), finalmente, fosse parar sob a guarda da ABL.

A “menina Laura” cresceu, nesse ínterim casou, virou a Sra. Laura Leitão de Carvalho e foi morar na Tijuca. Levou os livros que havia herdado de Machado de Assis, que, conforme costume da época, incluíam coleções encadernadas e algumas brochuras. As obras, durante certo período, ficaram acondicionadas na garagem da residência da família Leitão de Carvalho, onde muitos exemplares, em particular as brochuras, acabariam irreversivelmente danificados pelas costumeiras inundações da Tijuca.

Em 1960, Jean-Michel Massa, na ocasião, apenas um jovem estudante francês interessado em recolher subsídios para a sua futura tese de doutorado sobre literatura brasileira e Machado de Assis, veio para o Brasil. Durante três meses (julho, agosto e setembro) pesquisou intensivamente a obra de Machado de Assis na Biblioteca Nacional (BN) e graças ao diretor da BN na época, o acadêmico Augusto Meyer, frequentou a ABL e conviveu com outros membros da instituição. Massa tomou conhecimento da existência da biblioteca que fora de Machado de Assis e que estava sob a guarda da Sra. Laura Leitão de Carvalho. Apoiado por Augusto Meyer, o jovem pesquisador francês, conseguiu autorização da família Leitão de Carvalho para fazer o inventário das obras que foram de Machado de Assis. E assim, depois das 16h, quando fechava a BN, Jean-Michel Massa se dirigia para a residência na Tijuca, onde trabalhava, até a meia-noite, compilando, em fichas, os livros que haviam pertencido a Machado de Assis, enquanto as filhas do marechal Leitão de Carvalho namoravam, por horas a fio, ao telefone, conforme confidenciaria ele, 40 anos mais tarde.

Jean-Michel Massa, na casa dos Leitão de Carvalho, catalogou 718 títulos de obras remanescentes da biblioteca de Machado de Assis. Classificou-as em domínios, envolvendo assuntos, gêneros, línguas etc. Cerca de 56% dos títulos eram no idioma francês (399 livros), 24% em português e os demais em outros idiomas. O inventário, La bibliothèque de Machado de Assis, Massa publicou, em francês, na Revista do Livro, números 21-22, março-junho de 1961. Mais do que um mero inventário, destacou que, além das perdas das obras na garagem da Tijuca, a biblioteca de Machado de Assis havia sofrido um desmantelamento de cerca de 300 títulos logo após sua morte, que a então “menina Laura” havia ouvido falar no seio familiar. Que Machado não tinha o costume de fazer anotações nos livros que lia. E que, efetivamente, o principal domínio linguístico de Machado de Assis era o francês. Inclusive, descobriu que a famosa tradução de Machado de Assis do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, não fora feita a partir do original em inglês, mas sim da tradução francesa de Baudelaire, pois reproduzia os erros de leitura e de tradução do poeta francês.

O catálogo de Jean-Michel Massa é o inventário do que restara da biblioteca do escritor em 1960. Novos conhecimentos sobre a biblioteca de Machado de Assis e seu quase triste destino surgiriam nos anos 1980, a partir do trabalho feito pela professora Glória Vianna. Continua na próxima semana (...)

SUGESTÃO DO COLUNISTA: O livro “Ah! Essa estranha instituição chamada ciência” está disponível em versão Kindle na Amazon: https://www.amazon.com.br/estranha-instituição-chamada-ciência-Borgelatria-ebook/dp/B09Q25Q8H8

Gostou? Compartilhe