Quando do cinquentenário da morte de Machado de Assis, em 1958, muitas iniciativas foram levadas a cabo, especialmente pela Academia Brasileira de Letras (ABL) que, depois de muitos anos de silêncio, capitaneou os esforços para celebrar, dignamente, a memória do ilustre escritor. Exposições alusivas ao Bruxo do Cosme Velho e sua obra, ciclos de debate e divulgação intensiva nos veículos de comunicação deram ampla publicidade ao escritor, inclusive, da existência da biblioteca pessoal de Machado de Assis, albergada, na ocasião, na casa dos Leitão de Carvalho. E foi graças a essa movimentação em torno do cinquentenário da morte de Machado de Assis que Jean-Michel Massa, na ocasião, apenas um jovem estudante francês interessado em recolher subsídios para a sua futura tese de doutorado, em 1960, tomou conhecimento da existência da biblioteca pessoal do fundador da ABL e pode produzir, em tempo exíguo, três meses, o histórico inventário, La bibliothèque de Machado de Assis, que publicou, em francês, na Revista do Livro, números 21-22, março-junho de 1961.
Enquanto as celebrações em torno de Machado de Assis e sua obra aconteciam, Austregésilo de Athayde, que presidiu a ABL entre 1959 e 1993, diligenciava esforços juntos à família da “menina Laura”, então Sra. Laura Leitão de Carvalho, para que os livros do acervo pessoal de Machado de Assis, que, por direito de testamento, estavam sob a guarda da família, fossem doados à Academia Brasileira de Letras. E esse intento, provavelmente, foi alcançado em 1964, uma vez que, conforme ata de reunião da ABL de 30 dezembro de 1964, consta que a biblioteca pessoal de Machado de Assis, o que restara dela, efetivamente, passara a integrar o acervo da instituição da qual ele fora fundador, em 1897, e seu primeiro presidente.
E, apesar de sob a guarda da ABL, passaram-se, praticamente, três décadas, sem que, algo mais relevante do que havia sido feito por Jean-Michel Massa, fosse realizado. Até que, em 1989, por ocasião de visita à biblioteca da instituição, uma jovem estudante de letras, Glória Vianna, enquanto admirava, em uma sala contígua à biblioteca principal, uma cadeira almofadada e uma escrivaninha, sob a qual repousavam a caneta, o tinteiro, os óculos pince-nez e uma placa indicativa de que haviam pertencido a Machado de Assis, tomou conhecimento, por intermédio de um bibliotecário, que, nas três estantes próximas aos móveis, estavam guardados cerca de mil volumes, amarelados e empoeirados, que haviam sido parte da biblioteca pessoal do fundador da ABL. Foi uma grande emoção, relataria ela, anos mais tarde, poder tocar no espaldar da cadeira na qual sentara o nosso mais genial escritor.
Glória Vianna constatou que não havia nenhuma documentação sobre o acervo de Machado de Assis, além do inventário produzido por Jean-Michel Massa. Ela, quando ingressou, em 1990, no Curso de Mestrado em Literatura Brasileira da UFF, intentou mapear as leituras de Machado de Assis a partir de sua biblioteca. Foi dissuadida da ideia, pelos professores do curso, que consideraram o projeto ambicioso demais para mestrado. Trabalhou com Machado, mas sobre o jogo da repetição na composição do romancista, a exemplo da reescritura de Ressureição, na última grande narrativa machadiana, Memorial de Aires. Mas, Glória Vianna, não desistiria da ideia de estudar Machado de Assis enquanto leitor, vindo a retomá-la, nos anos 1990, quando no Doutorado em Literatura Comparada da UFF, ao utilizar, como fonte de pesquisa, a biblioteca do romancista, agora de acesso facilitado, uma vez que albergada na ABL.
As contribuições feitas por Gloria Vianna, ao revisitar a biblioteca de Machado de Assis para prestar o Exame de Qualificação de Doutorado, são de vulto. Leu a obra completa do escritor e se debruçou sobre os livros do acervo pessoal de Machado em busca das citações direta de autores consagrados e das fontes de alusões criadas pelo Bruxo do Cosme Velho. Recatalogou a biblioteca pessoal de Machado de Assis. Encontrou 649 volumes dos 718 originalmente descritos por Jean-Michel Massa. E 15 novos títulos, não catalogados por Massa, diagnosticando que 69 livros, que constavam no inventário de 1961, haviam sido extraviados. Ao ler, por sugestão do acadêmico Antônio Houaiss, todas as atas da ABL, pode fazer descobertas que eram, até então, desconhecidas no mundo acadêmico.
Entre tantas, Glória Vianna identificou a origem do desmantelamento do acervo do escritor que, efetivamente, iniciou logo depois da sua morte. Assim, confirmaram-se as memórias da “menina Laura” de que, além dos objetos pessoais, cerca de 300 livros haviam sido, efetivamente, levados para a ABL, pelos acadêmicos José Veríssimo e Mário de Alencar, após ampla negociação com a família da única herdeira, cujo pai, o major Bonifácio Gomes da Costa, era o testamenteiro. Além dos hábitos do Machado de Assis leitor, frequentador do Real Gabinete Português de Leitura, da Biblioteca Nacional e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que, a partir das abras que lia, construiu um sistema particular de alusões indiretas identificado por Glória Vianna.
Atualmente, sob agendamento, o acervo de Machado de Assis pode ser consultado na Biblioteca Acadêmica Lúcio de Mendonça, instalada no 2º andar do Petit Trianon, na sede da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro.
Aos interessados, para maior conhecimento dos trabalhos de Jean-Michel Massa e de Glória Vianna, sugere-se a leitura do livro “A Biblioteca de Machado de Assis”, organizado pelo professor José Luís Jobim, edição conjunta ABL e TopBooks, 2008.
SUGESTÃO DO COLUNISTA: O livro “Ah! Essa estranha instituição chamada ciência” está disponível em versão Kindle na Amazon: https://www.amazon.com.br/estranha-instituição-chamada-ciência-Borgelatria-ebook/dp/B09Q25Q8H8