O gênero epistolar, ainda que não faltem exemplos para provar a utilidade e o valor artístico de cartas na literatura, costuma ser olhado com certas ressalvas, não raro preconceituosas ou cheias de melindres, nos meios acadêmicos. Não são poucos os óbices, em tempos que missivas laudatórias atraem cada vez menos adeptos, de escrita digital apressada e corretores ortográficos “amigos” a nos ajudar a cometer verdadeiros atentados contra o vernáculo. E, acrescente-se que, o intuito primeiro de quem escreve uma carta, quase sempre, não é produzir literatura. Evidentemente, estamos nos referindo a cartas pessoais, supostamente não fictícias, e não do romance epistolar como gênero literário, que teve seu apogeu no século XVIII, quando foram produzidas obras como Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, publicada em 1774.
A correspondência pessoal, especialmente de famosos, suscita a curiosidade de muita gente e, não raro, quando publicada, pode se constituir em obra de sucesso ou se destacar pelo valor inestimável como fonte primária aos estudiosos dos temas que tratam. Mas, sempre se deve desconfiar da “sinceridade epistolar”. Quem pode garantir que o relatado numa carta realmente aconteceu daquela forma? Que o emitente não omitiu informações ou que, deliberadamente, não fantasiou a realidade dos fatos? Como identificar as ditas “verdades inventadas”? Eis questões que exigem atenção redobrada quando se faz a leitura desse tipo de obra.
Eu, particularmente, apesar da dificuldade no entendimento do conteúdo, sou apreciador do livro “For and Against Method” (A Favor e Contra o Método), que além das derradeiras aulas sobre o método científico, proferidas por Inre Lakatos na London School of Economics, em 1973, inclui a troca de correspondência, real, mantida entre Lakatos e Paul Feyerabend, e um diálogo introdutório fictício, uma vez ambos falecidos, recriado pelo organizador da obra, Matteo Motterlini. O livro mostra que, mesmo no terreno árido da filosofia da ciência, quando a genialidade dos interlocutores se sobrepõe, há espaço para a literatura florescer em uma troca de correspondência. Impossível ignorar como não sendo literárias, afirmações do tipo “a ideia está tão clara e bem definida como uma borboleta morta na caixa de um colecionador”, posto por um interlocutor, e, pelo outro, réplicas como “mostrando a inconclusividade das conclusões”, ao afirmar “eu não tinha problemas no início e agora eu não tenho nada além de problemas”.
Da correspondência de Machado de Assis, coligida pela Academia Brasileira de Letras em cinco tomos, sob supervisão de Sergio Paulo Rouanet, com organização e comentários de Irene Moutinho e Sílvia Eleutério, sobressai-se a força da veia literária da pena machadiana. Um bom exemplo é a carta enviada a uma moça, sua vizinha, Alba Araújo, que lhe havia presenteado com um gatinho preto para companhia, depois da morte de Dona Carolina. Como forma de agradecimento, Machado escreveu uma carta, em que adota o ponto de vista do felino e assina como “Gatinho Preto”. Ei-la: “Quinta-feira. / D. Alba, / Só agora posso pegar na pena e escrever-lhe para agradecer o obséquio que me fez dando-me de presente ao velho amigo Machado. No primeiro dia não pude conhecer bem este cavalheiro; ele buscava-me com palavrinhas doces e estalinhos, mas eu fugia-lhe com medo e metia-me pelos cantos ou embaixo dos aparadores. No segundo dia já me aproximava, mas ainda cauteloso. Agora corro para ele sem receio, trepo-lhe aos joelhos e às costas, ele coça-me, diz-me graças, e, se não mia como eu, é porque lhe custa, mas espero que chegue até lá. Só não consente que eu trepe à mesa, quando ele almoça ou janta, mas conserva-me nos joelhos e eu puxo-lhe os cordões do pijama. / A minha vida é alegre. Bebo leite, caldo de feijão e de sopa, como arroz, e já provei alguns pedaços de carne. A carne é boa; não creio, porém, que valha a de camundongo, mas camundongo é que não há aqui, por mais que os procure. Creio que desconfiaram que há mouro na costa, e fugiram. / Quando virá ver-me? Eu não me canso de ouvir ao Machado que a senhora é muito bonita, muito meiga, muito graciosa, o encanto de seus pais. / E seus pais, como vão? Já terão descido de Petrópolis? Dê-lhes lembranças minhas, e não esqueça este jovem Gatinho Preto.”
Gênio esse Bruxo do Cosme Velho!
SUGESTÃO DO COLUNISTA: O livro “Ah! Essa estranha instituição chamada ciência” está disponível em versão Kindle na Amazon: https://www.amazon.com.br/estranha-instituição-chamada-ciência-Borgelatria-ebook/dp/B09Q25Q8H8