No cemitério localizado no adro da igreja católica de Alpbach, um pequeno povoado austríaco nos Alpes tiroleses, repousam os restos mortais de Erwin Schrödinger. A sepultura, ornamentada com vegetação viva, em nada se diferencia das demais ao seu redor, exceto pela cruz metálica que, servindo de lápide, dá sustentação a duas placas. Uma com a inscrição “Erwin Schrödinger, 12.VIII.1887 - 4.I.1961” e outra, logo acima, contendo uma equação diferencial parcial, que qualquer iniciado em física facilmente identificaria como a “equação de Schrödinger” ou como o ponto de partida para todos os cálculos da mecânica quântica. A pouco mais de 600 km dali, em Genebra, no Plainpalais, no cemitério reservado para personalidades suíças notáveis, próximo de onde está sepultado Calvino, há o túmulo de Jorge Luis Borges. Na lápide de pedra falquejada, num lado, o nome do ilustre escritor argentino e as datas de nascimento e morte, 1899-1986. Soma-se, ainda, um escudo encontrado no cemitério anglo-saxão de Sutton Hoo, a reprodução da capa de um livro de poemas e uma figura em que sete guerreiros erguem suas espadas quebradas no ar, além de uma citação tirada de “A batalha de Maldon”. No lado oposto, a imagem de um barco viking, referências à “Saga dos Volsungos “e a epígrafe de Ulrica, que confunde os platônicos personagens Ulrica a Javier Otárola com os reais María Kodama e Borges.
Aparentemente nada uniria essas duas lápides. Uma, a do cientista que é considerado o pai da teoria quântica moderna, marcada pela discrição, e a outra, do magistral escritor argentino, com símbolos em demasia, distoando do desejo expresso nos versos “Só peço as duas abstratas datas e o esquecimento”. Sobre isso, Maria Ester Vázquez, amiga e ex-colaboradora de Borges, chegou a ironizar que “a única coisa que falta ali...é uma frase da Mafalda!" Borges e Schrödinger, cada qual ao seu modo, são habitantes desse território comum que há entre a arte e a ciência. Uma vez que a ciência é também criação e a arte é também descoberta. A poesia existe em decorrência da limitação da linguagem para expressar coisas que vão além do significado meramente literal dos versos. Todavia, nada impede que aquilo que um dia começou como artifício da imaginação poética possa se converter depois em uma síntese científica da realidade. Em muitos casos, Borges, um dos escritores mais citados pelos cientistas, de forma voluntária ou não, fez isso com maestria, inclusive nos domínios da mecânica quântica, unindo assim, de forma indissociável, o seu nome ao de Schrödinger.
A mecânica quântica lida com o mundo microscópico. E nesse mundo, especificar o estado de uma partícula em um dado momento é indicar certa função que contém a probabilidade de que a partícula esteja em certo lugar e com certa velocidade. Tratando-se a função de onda de Schrödinger como uma distribuição de probabilidades, tudo o mais nesse universo decorre dela. Outra das revoluções conceituais estabelecidas pela mecânica quântica foi deixar de lado uma realidade suspostamente objetiva em prol de várias realidades que existem simultaneamente. E é nesse ponto que Jorge Luis Borges, em 1941, quando publicou “El jardín de senderos que se bifurcan”, provavelmente sem sabê-lo (?!), uma vez que, no prólogo de Ficciones, rotula esse conto de policial, propõe uma solução para um problema da física quântica que ainda não havia sido resolvido. Antecipa a tese de doutorado e a hipótese dos muitos mundos de Hugh Everett III, publicada em 1957. Na solução de Borges, o labirinto não é espacial, mas sim temporal. Nessa trama de tempos estão abarcadas todas as possibilidades. Não existimos, por exemplo, na maioria desses tempos; em alguns deles você existe e eu não; em outros, eu existo e você não; e em outros ainda, nós dois existimos. As alternativas criam futuros, que também proliferam e se bifurcam.
Mas, nesse ponto, como bem frisou Alberto Rojo no livro “Borges e a mecânica quântica” (Editora da Unicamp, 2011), as coincidências existem e às vezes nos induzem a confundir correlação com causa e efeito ou similitude com representação. E aqui tanto pode ser a ciência lida como ficção quanto a ficção de Borges lida como ciência.
(Coluna orginalmente publicada em 25/08/2011.)
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