OPINIÃO

O “embranquecimento” de Machado de Assis

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A discussão sobre a cor da pele daquele que é considerado “a mais alta expressão do nosso gênio literário”, de todos os tempos, Joaquim Maria Machado de Assis, conforme é destacado por José Veríssimo, na sua História da Literatura Brasileira, de 1916, vem de longa data. Iniciou quando Machado de Assis ainda era vivo, se acirrou imediatamente após a sua morte e, pasmem, chegou até os nossos dias.

Antes de retrocedermos na história, cabe rememorar dois acontecimentos, um relativamente recente e outro atual. Muitos hão de lembrar que, em 2011, no rastro das comemorações dos 150 anos da Caixa Econômica Federal (CEF), essa instituição financeira patrocinou um comercial, com narração da atriz Glória Pires, que aparecia Machado de Assis, sabidamente, por ter explicitado em testamento, possuidor de caderneta de poupança, um cliente da CEF, porém, no vídeo, representado por um ator branco. A peça publicitária recebeu críticas. A CEF pediu desculpas, tirou o comercial do ar e foi produzido outro, com um ator preto, também não sem críticas, fazendo o papel do Bruxo do Cosme Velho. E, em 2024, a própria Academia Brasileira de Letras (ABL) reascendeu a discussão, ao patrocinar a produção, com o uso de Inteligência Artificial, de um avatar digital de Machado de Assis, com capacidade de conversar com os visitantes, que, chamou a atenção pelo tom da pele notadamente mais claro do que seria o original do primeiro presidente da instituição mater das letras pátrias. Diante da polêmica, a ABL e a empresa responsável pela criação do avatar digital vieram a público esclarecer que o “embranquecimento” de M.de.A era um efeito da iluminação do vídeo e não intencional. Explicação dada, o tempo se encarregará de mostrar se será aceita.

Machado de Assis, pela origem, filho de pai preto e mãe branca, seria, por razões evidentes, considerado, na atualidade, um afrodescendente. A sua ascensão social, como escritor e funcionário público, a temática das suas obras, relatando a elite social da época, mas, acima de tudo, pelo casamento com a “branquíssima” Carolina Augusta Xavier de Novais, portuguesa de nascimento e educação, que, segundo alguns biógrafos, teria lhe ensinado a dominar a língua inglesa, deu azo a acusações dos seus contemporâneos, que, mesmo presentes quando o escritor era vivo, recrudesceram e vieram a público quase imediatamente após a sua morte.

Afinal, engrossaram o coro das críticas, Machado de Assis, ao ascender na escala social se afastou do núcleo familiar do Morro do Livramento, especificamente da madrasta, uma mulher preta, nunca dedicou uma linha sequer à memória dos seus antepassados e teria ficado indiferente, nas suas obras, ao sofrimento dos escravizados, os seus irmãos de raça, em tempos de fervorosas discussões abolicionistas. Há um certo exagero nisso. Machado de Assis, ainda que de forma sutil e elaborada, não ignorou a mácula da escravidão dos africanos trazidos à força para o Brasil.

A imagem clichê de Machado de Assis, retratado como um respeitável senhor branco, usando pince-nez com corrente, barba e cabelo alisados e bem cuidados, e vestindo um impecável traje, foi construída ao longo do século XX e, pelo que parece, continua no atual, como parte do processo de escondimento da sua origem afrodescendente. Ainda que no atestado de óbito de M.de.A apareça “cor branca”, José Veríssimo, no necrológio que assinou, rotulou-o de “mulato” - “mulato, foi na realidade um grego dos tempos áureos” - , tendo sido advertido com veemência por Joaquim Nabuco, que insistiu na tese “Machado para mim era um branco, e creio que tal ele se considerasse”.

Ninguém foi mais atroz na crítica a Machado de Assis do que o professor Hemetério José dos Santos, em carta aberta na Gazeta de Notícias (16/11/1908). Não casualmente, Hemetério era preto e, post-mortem de Machado de Assis, destilando ódio, atacou tanto o homem (pelo procedimento com a madrasta e a indiferença pela sorte da raça que pertencia) quanto o escritor, rotulando-o de primário e dono de um vocabulário pobre, insistindo que quem ler três páginas de Dom Casmurro, do Brás Cubas e de Memorial de Aires deve ter lido toda a sua obra. Uma injustiça com a memória de M.de.A, frise-se.

Tampouco Sérgio Buarque de Holanda, no seus Raízes do Brasil, primeira edição de 1936, poupou Machado de Assis de crítica, afirmando que “Machado de Assis foi a flor dessa planta de estufa”, quando faz referência à criação de um mundo fora do mundo, em que o amor às letras instituiu um derivativo cômodo para o horror à nossa realidade cotidiana.

Machado de Assis é muito maior do que essas questiúnculas sobre a cor da sua pele. Oxalá venha o dia que sejamos indiferentes a ela!


SUGESTÃO DO COLUNISTA

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