Tragédia
Impossível não falar sobre a catástrofe. É tema trágico, triste e até se torna maçante. Mas não abordar sobre a tragédia é omissão ou tapar o sol com a peneira. A meteorologia foi muito má e, agora, o clima é de consternação. Além das notícias, que vão das mortes ao empenho voluntário, surgem multifacetadas condutas entre os habitantes desta aldeia. Ao som de soluços que abafam lágrimas, encontramos a bondade de muitos e o oportunismo de alguns. A chuva foi devastadora em uma faixa do estado e mesmo em áreas distantes deixou suas digitais.
Mas, como estamos focados nas áreas mais afetadas, pouco se falou sobre as casas inundadas na Entre Rios e outras consequências aqui em Passo Fundo. A pauta é atenuada pela distância. Enquanto a enchente dividia espaço nos noticiários com o show da Madona, havia políticos focados em eleitoreiras homenagens. As notícias se alternavam entre os transbordamentos de rios no Rio Grande do Sul ou de público em Copacabana. As orientações iam das condições das estradas gaúchas às ruas de acesso ao espetáculo. Nada contra o show. Num país continental temos, simultaneamente, áreas em luto e em festa.
É claro que os olhares de todo o país estão direcionados para este apêndice em desespero. Não podemos fazer da tragédia um espetáculo. O problema é o roteiro maligno, que escrevemos ano após ano, numa longa produção de maus tratos à natureza. Sabemos muito bem qual será o resultado e, cientes de tudo, aguardamos para que o pior aconteça. Conhecemos zonas de alagamento e, de tempos em tempos, elas alagam.
Sabemos do aquecimento global, que alguns tentam congelar. Contamos com conhecimentos da geologia à meteorologia, mas entram por um ouvido e saem pelo outro. Até parece que a ciência virou assombração. Assombração que quando dá as caras torna-se devastadora. Enfim, a mesma mão do homem que devasta a natureza um dia irá separar os escombros.
Negacionismo
O vírus negacionista ainda circula entre nós. Ao que parece, eclode em situações calamitosas. Não é diferente, agora, quando vivemos a pior tragédia já enfrentada pelos gaúchos. Latente ou escamoteado, o negacionismo é saliente nas redes sociais. Antes, durante e depois da tragédia. Desdenhavam das previsões (científicas!) com insossos argumentos. Outros até faziam piadas sobre o aquecimento global. No olho do furacão, falavam que logo estaria tudo resolvido e classificavam a enchente como um cálice transbordando.
Diziam que as mortes seriam “acidentais” e tudo logo seria normalizado. Mesmo com a água batendo na bunda, os negacionistas mais convictos entendiam que não havia nada diferente. E, depois do chumbo grosso que veio das nuvens, apostam na força do sol para mostrar que nada houve. Para eles a reconstrução será uma barbada, pois aos seus olhares nada aconteceu. Tão resolutos, demonstram uma espécie de fé para negar tudo e mais um pouco. Mas, com certeza, necessitam uma boa dose de Fé.
Santos Dumont
É interessante lembrar que tudo nesses dias está relacionado ao céu. A chuvarada veio das nuvens. Mas, o céu não é mais o limite depois de Alberto Santos Dumont. Se o céu semeou a desgraça, o céu trouxe a ajuda. Quando não há caminhos pelo solo, a aviação chega voando. E essa voluntariedade espontânea não ficará no esquecimento. Mais uma vez, reafirma-se a importância da aviação de pequeno porte e, especialmente, dos aeroclubes que formaram esses pilotos. A minha preocupação é que logo, logo os homens públicos não irão lembrar disso. Tomara que eu esteja errado e, agora, também caia do céu o asfalto sobre a pista do Aeroclube de Passo Fundo. Tomara.
Salgado Filho
O Aeroporto Salgado Filho é emblemático e faz parte da vida de várias gerações de gaúchos. Para minha tristeza o aeroporto de Porto Alegre foi inundado pela enchente. A imagem de um Boeing 727 cargueiro com a água acima da barriga é emblemática. Espero que as águas não tenham afetado o painel que está no antigo terminal, que tem a magnífica obra de Aldo Locatelli “A Conquista do Espaço”.
Amanhã
A tragédia não acabou. Temos passo-fundenses ilhados em Porto Alegre. Alguns estavam na capital a trabalho, outros tentavam embarcar em voos internacionais. E por aqui também há consequências, pois complica tudo num país dependente da malha rodoviária quando pontes e estradas despencam. É bom lembrar que, entre a chuva e a bonança, há um longo hiato para reconstruir e superar consequências que surgirão como novas adversidades. É tempo de peleia!
Centenário
Se passaram enchentes, secas, pandemias e faltam 406 dias para o Centenário de O Nacional.
Trilha sonora
Ronnie Aldrich - The Old Fashioned Way