Nunca houve uma mulher com um olhar tão misterioso como Capitu. Isso mesmo, a personagem do romance Dom Casmurro, escrito por Machado de Assis, publicado em dezembro de 1899, cujo olhar oblíquo, cheio de incertezas e de ambiguidades, sugeria quase tudo e revelava muito pouco. E que, além de ter feito Bentinho desistir de se tornar padre, levou-o, torturado pelo ciúme e pela dúvida da infidelidade, a ficar cada vez mais amargo, solitário e casmurro.
Eis que, quase cem anos depois, surgiria La Niña. Tão intrigante, misteriosa e ameaçadora, com seus impactos econômicos e sociais, quanto a Capitu de Machado de Assis. Todavia, nesse caso, não se trata de uma personagem de um romance. É um fenômeno natural que tem sido objeto de artigos em publicações científicas, tema de reportagens em revistas de divulgação, matérias em jornais, em rádio, em televisão e, até mesmo, servido de assunto para conversações as mais variadas possíveis.
Na literatura científica e nos veículos de comunicação de massa, um fato notório, sobre La Niña, é que este fenômeno parece não possuir personalidade própria. É, quase sempre, relacionado de forma oposta ao El Niño. A referência comumente usada para La Niña é o fenômeno El Niño. Não a temperatura normal da superfície das águas do Oceano Pacífico equatorial, como é feito quando o episódio em pauta é El Niño.
Na verdade, La Niña é um resfriamento extremo das águas superficiais do Oceano Pacífico equatorial, por um período longo de tempo, na sua porção central e leste (costa oeste da América do Sul). Mas não é um resfriamento qualquer, uma vez que, em se tratando de uma região de águas oceânicas geladas, chegou a ser visto por alguns como apenas um extremo do caso normal. E que, via o acoplamento da superfície do Oceano Pacífico com a atmosfera, a exemplo o El Niño, acaba causando mudanças no padrão de circulação geral da atmosfera e exercendo uma influência à distância (teleconexão atmosférica) em várias partes do mundo. Mas, se não quantitativamente, pelo menos, em muitos locais, qualitativamente, causa impactos climáticos opostos aos relacionados com El Niño, a exemplo do sul do Brasil. Isso passa, para o público geral, uma visão de simetria linear do mundo. O seja, El Niño e La Niña vistos como imagens de espelho (iguais, porém invertidas). E, na realidade, não existe essa simetria perpetrada pelo senso comum em termos de impactos climáticos e muito menos em se tratando de impactos econômicos e sociais associados com o fenômeno El Niño Oscilação Sul (ENOS) e suas fases.
Há também que se considerar, tanto para El Niño quanto para La Niña, que os eventos não se repetem sempre iguais, como a generalização da informação e a ideia de linearidade subjacente podem deixar transparecer. Em algumas situações de eventos fracos, por exemplo, as condições locais e regionais podem ser determinantes mais fortes do comportamento das variáveis meteorológicas (a exemplo da temperatura das águas do Atlântico Sul; na Região Sul). Assim, é necessário que se tenha clareza que previsão do fenômeno ENOS, não importando qual fase, El Niño ou La Niña, e a projeção de impactos, econômicos e sociais a partir do clima, são coisas independentes e muito diferentes.
La Niña, "A Menina" que, por ora, uma vez aventada a sua volta no segundo semestre de 2024, por um lado, para os produtores rurais do Rio Grande do Sul, trouxe a esperança de uma condição climática muito melhor do que 2023, para os cultivos de inverno (primavera menos úmida); por outro revive a triste lembrança do verão 2021/2022, quando a estiagem associada com La Niña causou vultosa quebra de safra na soja e no milho.
A complexidade científica de La Niña pode ser comparada a complexidade psicológica de Capitu, personagem símbolo da fase realista de Machado de Assis. Todavia, La Niña não é mais uma criança. Hoje, considerando-se que o termo foi cunhado e popularizado pelo climatologista sul-africano George Philander, em 1985, estaríamos diante de uma não mais tão enigmática balzaquiana, que se aproxima dos 40 anos.
O mais recente boletim ENSO Diagnostic Discussion, do Climate Prediction Center/NCEP/NWS, liberado no dia 13 de junho de 2024, é taxativo ao decretar o final do El Niño 2023/2024 e chamar a atenção para a expectativa de volta de La Niña, com 65% de chance, entre julho e setembro, subindo para 85% de probabilidade, no trimestre novembro de 2024 a janeiro de 2025.
Tudo o que se pode esperar dessa fugaz balzaquiana, por ora, ainda é incerto, porém sinaliza um rumo, no padrão de chuvas no sul do Brasil, que deve ser diferente do que temos vivenciado nos últimos tempos.
(Coluna originalmente publicada em 1999. Atualizada.)
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