Quem leu o conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, imagino, não deve ter ficado indiferente à maestria com que Jorge Luis Borges, valendo-se de conceitos filosóficos, compôs, ao estilo George Orwell, uma quase distopia sobre um planeta imaginário que é apresentado como real e que, ao fim e ao cabo, seria a Terra, se a doutrina idealista fosse a verdadeira descrição da realidade.
Um espelho a espreitar no final de um corredor e uma enciclopédia darão ensejo ao bem-conhecido comentário de Bioy Casares, atribuído a um dos heresiarcas de Uqbar, que havia declarado que “os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número de homens”. Bioy afirmou que essa memorável sentença podia ser encontrada na The Anglo-American Cyclopaedia, no artigo sobre Uqbar. Casualmente, consultada a referida enciclopédia, que havia na casa mobiliada que fora alugada por Borges e Bioy, não foi encontrada nenhuma referência a Uqbar. Bioy insistiu na história, Uqbar estaria situado na Ásia Menor, no território onde se localiza o Iraque.
Incessantes buscas sobre Uqbar resultaram infrutíferas. Borges cogitou, inclusive, que Uqbar e a sentença do heresiarca seriam invenções de Bioy. Mas, um dia, Bioy apresentou o volume XXVI da The Anglo-American Cyclopaedia, que havia adquirido em um remate de livros, e, efetivamente, nesse tomo aparecia Uqbar, nas páginas 918 a 921. A diferença, desse volume para os demais consultados da mesma enciclopédia, é que esse tinha 921 páginas e os outros apenas 917. Mas, o que o heresiarca de Uqbar havia dito era que “os espelhos e a paternidade são abomináveis”, notoriamente inspirado em Schopenhauer, que a repetição é um erro ao infinito, uma vez que as cópias degradam os originais.
Tlön era uma das regiões de Uqbar. Mas, com o tempo, daria nome ao planeta imaginado por uma sociedade secreta e benévola que, ao se deslocar da Europa para a América, em vez de um país (Uqbar) pensou logo em um planeta (Tlön), dando início à elaboração da First Encyclopaedia of Tlön (uma paródia da Enciclopédia Britânica), provisoriamente chamada de Orbis Tertius.
A história começou a ser elucidada quando Borges, narrador, dois anos depois da passagem com Bioy, encontra, em Adrogué, no Hotel La Delicia, o volume XI da First Encyclopaedia of Tlön, que havia sido destinado a Herbert Ashe, que morrera vitimado pelo rompimento de um aneurisma. Herbert Ashe, nome usado por Borges em outros contos, alternando ficção e realidade, foi inspirado em William Foy, o engenheiro ferroviário inglês, que vivia como hóspede permanente do Hotel La Delicia e, segundo se dizia, padecia de irrealidades, como tantos ingleses.
Em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius um planeta imaginário (Tlön) é apresentado como real. Trata-se de um planeta fantástico construído pela lógica idealista, que cria uma realidade (ainda que fantástica) com as irrealidades do idealismo, onde a realidade só existe como um processo mental. Um mundo onde não há substantivos, apenas verbos impessoais; não há nomes, somente descrições. As ideias de David Hume, mesmo que veladas, podem conferir a esse filosofo o título de santo patrono do idealismo Tlöniano. Os metafísicos de Tlön não têm preocupação com a verdade, apenas com o assombro. Ainda que relativamente deformadas, as ideias de Russel aparecem na escola da negação do tempo em Tlön, por uma humanidade que recorda um passado ilusório, notoriamente embasada na afirmação que toda crença baseada na memória tem lugar no presente como se aquilo que é rememorado estivesse acontecendo agora.
E, para surpresa, em 1944, foram encontrados em Nashville, os 40 volumes da primeira Enciclopédia de Tlön. Dando conta que muitos objetos estranhos – bússolas e cones de metal – estavam sendo encontrados na Terra, profetizando a ameaça final, que Tlön está entre nós e, um dia, o mundo será Tlön.
Entenda-se que, para Jorge Luis Borges, conforme consta no epílogo de Otras Inquisiciones, as ideias filosóficas ou religiosas são apreciadas pelo seu valor estético e pelo que encerram de singular e maravilhoso. E, para ampliar o tema, sugere-se a leitura do livro La Filosofia de Borges, de Juan Nuño, Fondo de Cultura Económica, México, 1986.
Coluna originalmente publicada em 05/08/2022.
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