OPINIÃO

Os Nelsons

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Imagino, embora não possa estar certo disso, que, quem leu o conto A Intrusa (La Intrusa) ou assistiu o filme homônimo (produção brasileira e argentina, de 1979, música de Astor Piazolla, direção de Carlos Hugo Christensen, tendo José de Abreu, Arlindo Barreto e Maria Zilda como protagonistas) baseado na trama da história original de Jorge Luis Borges, não ficou alheio à singularidade da relação que unia os irmãos Nelsons (ou Nilsens), Cristián e Eduardo, e a china (expressão gauchesca para mulher) Juliana Burgos.

A história dos irmãos Nelsons, dizem, apesar de pouco provável, segundo Borges, veio a público por meio de revelação feita por Eduardo, o mais jovem, durante o velório de Cristián, o mais velho, que havia morrido por morte natural, corria o ano de mil oitocentos e noventa e tantos. Dois calaveras, na acepção da palavra. Temidos na vizinhança. Desentender-se com um, era arrumar inimizade com outro. Mas, efetivamente, os problemas entre os irmãos começariam quando Cristián, o mais velho dos Nelsons, levou, para viver com ele, Juliana Burgos, uma morena de olhos rasgados, que bastava um olhar para retribuir um sorriso. Eduardo, o mais novo dos Nelsons, também se enamorou dela. E, para realçar que mulher (china) não valia grande coisa naquele mundo de bárbaros, Cristián e Eduardo nunca chamavam Juliana pelo nome ou se dirigiam diretamente a ela. No entanto, para assombro da vizinhança, depois de certa noite, passaram a comparti-la. Eduardo chegou e encontrou o cavalo de Cristián atado no palanque da cerca. No pátio do rancho, o irmão mais velho esperava-o com as suas melhores pilchas. Juliana, com o mate na mão, andava de um lado para o outro. Cristián avista Eduardo e diz: - Yo me voy a una farra en lo de Farías. Ahí la tenés a Juliana; si la querés, usala.

A relação dos três andou assim por algumas semanas. Até que os dois irmãos passaram a discutir por qualquer coisa. Sem se dar por conta, estavam com ciúmes um do outro. E isso, de algum modo, os humilhava. Juliana atendia aos Nelsons com uma submissão bestial. Mas, parecia denotar preferência pelo mais novo. Até que, um dia, de comum acordo, resolveram vender Juliana a um prostíbulo. Cristián cobrou o preço acordado com a dona do bordel e dividiu o dinheiro com Eduardo. A vida voltou a normalidade no rancho dos Nelsons. Só que, agora, os irmãos, de quando em quando, se encontravam esperando turno para ver Juliana no prostíbulo. Foi então que decidiram deixar de cansar os cavalos nessas longas viagens. Valia mais tê-la à mão. E, assim compraram Juliana de volta.

Segundo o psicanalista Julio Woscoboinik, Caim, como reza a lenda, anda sempre à espreita. Mas, o carinho entre os Nelsons, diante de tantos perigos vivenciados, era muito grande. E, nesse caso, Caim não matou Abel, porém matou Juliana. A cena na qual Cristián comunica o feito a Eduardo é antológica: - A trabajar, hermano. Después nos ayudarán los caranchos. Hoy la maté. Que se quede aquí con sus pilchas. Ya no hará más perjuicios. Se abrazaron, casi llorando. Ahora los ataba otro vínculo: la mujer tristemente sacrificada y la obligación de olvidarla.

Há enigmas borgeanos no conto A Intrusa. O sobrenome Burgos de Juliana, alusivo a Borges (Jorge de Burgos, o bibliotecário cego, personagem do romance O Nome da Rosa, de Umberto Eco). A epígrafe “2 Reis, I, 26”, falseada, uma vez que o capitulo I, do segundo livro de Reis, tem apenas 18 versículos. A citação correta seria “2 Samuel, I, 26”, na fala de Davi a Jônatas, morto em batalha, Choro por ti, ó meu irmão Jônatas. O mais gentil e mais amável que o amor das mulheres. Eu amava-te como uma mãe ama o seu filho único”, mas que, efetivamente, não eram irmãos. Quando confrontado, Borges, com peculiar ironia, simplesmente alegou que Reis é uma palavra mais bela do que Samuel.

O mais simbólico desse conto é a frase que fecha a história (A trabajar, hermano. Después nos ayudarán los caranchos...). Segundo Borges, eis a frase que ele não encontrava e salvou o conto. Foi posta por sua mãe, Leonor Acevedo de Borges, que, contrariada com o tema, colhia o ditado do filho. Verdade ou não, de tão bem contada e de tanto ser repetida, essa versão ficou sendo aceita... et tout le reste est litterature.

P.S.: Coluna originalmente publicada em 22 de julho de 2022.

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