A lição que vem do Rio

Ação policial e militar contra o tráfico no Rio de Janeiro repercute em todo o Brasil. Mais do que reflexos em quantidade de drogas ou armas, ela serve de exemplo de como a integração policial é fundamental para o êxito no combate ao crime organiza

Por
· 9 min de leitura
Você prefere ouvir essa matéria?
A- A+

Leonardo Andreoli/ON

O Brasil acompanhou atônito o volume de drogas e o poderio das armas apreendidas na Vila Cruzeiro, Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, nas últimas semanas. Os prejuízos financeiros e organizacionais às facções criminosas são inestimáveis. Da mesma forma como em uma guerra, toda a ação que envolveu policiais de diversas corporações e as forças militares brasileiras não passou de uma batalha. Uma das mais importantes que os brasileiros acompanharam ao vivo em território nacional. Mais do que a desarticulação de quadrilhas, a ação inicia uma nova forma de pensar a segurança pública. A integração entre as forças e o conhecimento técnico são elementos fundamentais deste processo.
Para entender como a luta contra o tráfico carioca reflete no país e como isso interfere na sociedade, o jornal O Nacional conversou com especialistas da área de segurança pública e também com um sociólogo. Enquanto por unanimidade eles falam do sucesso da ação, não se esquecem de ressaltar que esta é apenas uma parte do trabalho. Apesar de todas as peculiaridades encontradas no Rio de Janeiro muitas coisas servem de exemplo para todo o Brasil.

Estratégia de guerrilha
Estudioso da área de segurança pública, o policial federal, Flávio Ramos, teve a oportunidade de trabalhar no Rio de Janeiro no ano de 2006. Ele explica que a ação policial das últimas semanas é mais uma batalha de uma guerra travada há quatro anos contra o tráfico. Comparando com a Segunda Guerra Mundial, ele explica que a tática utilizada foi a de acuar os criminosos que dominavam a cidade a um espaço menor onde uma ação mais eficaz e planejada pudesse ser executada. A reconquista do território pelo estado teve sucesso em outros 12 pontos da cidade com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). “A polícia empurrou os integrantes desses 12 morros para um determinado lugar da cidade, a Vila Cruzeiro, Complexo do Alemão. Agora se pode combater com mais tranquilidade e mais estratégia ainda, porque eles estão todos entocados num lugar só”, esclarece.

Planejamento técnico
Ramos destaca que todo o trabalho só teve sucesso porque uma pessoa qualificada tecnicamente foi colocada para trabalhar na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro (SSP-RJ). “A reconquista desses espaços não se deu levando apenas polícia para as comunidades, mas o que os traficantes não ofereciam aos moradores: a cidadania. As pessoas se quer tinham uma conta de luz para abrir um crediário em determinadas lojas. Com a chegada do estado isso foi possibilitado. Hoje o estado com ações sociais conseguiu tomar conta desses lugares e a tendência é que ele permaneça, porque se virar as costas podemos voltar ao status anterior, o que não deve acontecer”, salienta.

Reflexo na segurança pública
O titular da Delegacia de Furtos, Roubos, Entorpecentes e Capturas (Defrec) de Passo Fundo, Adroaldo Schenkel, acredita que a ação realizada no RJ reflete em todos os segmentos da segurança pública do país. “Primeiro, revelando a força estatal, quando necessário, a vontade coletiva se impõe ao domínio privado, no caso criminoso.  Segundo, na consciência pública da necessidade da preservação da ordem e do respeito às leis. Terceiro, que a participação da sociedade é muito importante, quer cobrando a volta do estado de direito, mas também fornecendo informações para a atuação policial. E por último revela a necessária integração entre os organismos de segurança, respeitando-se as atribuições de cada órgão, mas agindo de forma integrada, visando a missão final”, considera.

Ele também destaca que as forças policiais estão mais motivadas. “O apoio da sociedade traz muita auto-estima.  As polícias aqui já agem coordenadas. Com esse exemplo, acredito que resulta num impulso para um entrosamento ainda melhor.  O policial ao notar o apoio da comunidade e dos meios de comunicação passa a ter ainda maior responsabilidade e compromisso, não só no combate ao crime, mas também no atendimento e relacionamento com o cidadão”, presume.
Para o tenente coronel João Darci Gonçalves da Rosa a mudança de atitude dos criminosos deve se limitar ao Rio de Janeiro. Isso porque no Rio Grande do Sul a situação é diferente. “Não podemos comparar, os criminosos daqui não vão mudar as atitude deles porque a polícia não tem nenhum local no Estado onde ela não entre. Quando existe algum problema, nós entramos e resolvemos a situação”, afirma. Ele acrescenta que a ação da polícia mostrou aos criminosos que eles não são os donos do território. “O estado pode tomar o controle da situação”, reitera. Para o coronel a principal mudança deve ser no modo como a sociedade vê os policiais militares. “Depois desta ação haverá uma maior valorização do policial principalmente do militar. Estamos num momento muito delicado, temos a PEC 300 que está para ser votada, e isso vai facilitar que as autoridades olhem com bons olhos a nossa causa”, diz.

A sociedade
Para o sociólogo e professor da Imed, Vanderlei de Oliveira Farias os confrontos cariocas têm impacto na vida de todas as pessoas que acompanharam, mesmo que vivam em comunidades diferentes. “Há um sentimento generalizado de insegurança e os episódios ocorridos, na Vila Cruzeiro, no Complexo do Alemão, representam a insegurança levada ao absurdo”, observa. De acordo com ele, os efeitos são percebidos no imaginário geral. “Quando o horror é trazido à tona, não há quem não fique assustado, revoltado, indignado. Horror, que para os habitantes das favelas, era um ingrediente normal de todos os dias. As cartas entregues pelos habitantes, por suas crianças, as palmas, as canecas de água alcançadas à mão dos policiais foram todos sinais que bateram como um sino ensurdecedor em nossas cabeças. Não há como sustentar tal realidade. Não há como sustentar que isso possa acontecer na minha cidade, no meu bairro”, sintetiza. Ele acrescenta que é por esse motivo que os policiais agora são aplaudidos em outras partes do país quando prendem ladrões. Farias acrescenta que os efeitos práticos da ação da polícia no Rio atingem inclusive os gestores públicos. “Eles perceberam o que significa ignorar a pobreza, e começam a ficar cada vez mais atentos às segregações espaciais, planejam a cidade e o espaço urbano e começam a levar, de forma mais rápida, a qualidade de vida que há no centro da cidade para os bairros. Da mesma forma, a população exige mais seus direitos, sente-se encorajada”, compara.

Empatia com os fatos
A exibição das imagens do confronto ao mesmo tempo pode levar a uma distorção do que está acontecendo, mas também servir como um instrumento regulador, tanto para as ações dos policiais quanto para as ações dos traficantes. “Para quem acompanha em tempo real, há uma empatia muito forte com os fatos. Vamos nos sentindo parte do que está acontecendo e reagimos mais rapidamente aos fatos. Em alguns momentos a sensação parece ser de alguém que está assistindo um reality show, surge a angústia, a raiva, a emoção pois a sensação é de alguém que está vivendo aquela situação”, explica o professor.

Missão de êxito
A integração das forças policiais é vista pelo sociólogo como um dos fatores do sucesso da operação. “Pela primeira vez, de forma escancarada, as forças de segurança deixam para trás toda e qualquer diferença entre si, e se unem contra o poder dos traficantes”, complementa. Por outro lado a abertura do morro permitiu ao Brasil conhecer um pouco mais da realidade de quem vive nesses lugares. “As imagens revelaram que em 2010, milhares de pessoas ainda vivem como se estivessem na Idade Medieval, em meio ao lixo, sem endereço, comandadas por milícias fortemente armadas, que destroem dia após dia a sua dignidade. Como demoramos tanto tempo para perceber isso?”, questiona Farias.

Integração
Para Flávio Ramos as ações realizadas no RJ servem como exemplo de organização, estratégia e de humildade por parte dos integrantes da polícia. Ele destaca a integração entre os organizadores da ação. “A SSP-RJ é composta por policiais federais, civis e militares. Entendo que a população, tanto a carioca, a gaúcha, não quer saber quem prendeu, ela quer que alguma coisa seja feita. Os nossos administradores policiais não entendem essa necessidade da população. Muitas vezes trabalhos policiais são comprometidos, porque a vaidade não deixa que a integração entre as polícias aconteçam”, opina. O exemplo dado à população também serve para os criminosos. “Agora eles têm a noção de que se o estado quiser, ele consegue ter uma maior efetividade no combate ao crime. O exemplo do RJ é muito bom para o resto do país, mas dentro de uma integração de forças, se houver competição, não vai servir para muita coisa”, reitera.
O delegado titular da Defrec, Adroaldo Schenkel, concorda que o resultado das ações é satisfatório. “Mesmo que muitos dos traficantes não tenham sido inicialmente presos, viu-se a apreensão de quantidades absurdas de drogas, armas, mas principalmente houve a retomada dos locais pelo estado e pela Lei.  O criminoso sem o ponto de apoio representado pelo domínio absoluto dos locais, perde a articulação, a sustentação e, além de diminuir muito a sua atividade nociva, vira alvo fácil para ações seguintes”, opina. Para Shenckel o êxito maior foi o da articulação policial integrada e do apoio da sociedade e da mídia para as ações.

E o futuro?
Para o sociólogo Farias não há dúvidas do êxito da ação. “Porém há dúvidas com relação ao futuro, isto é, com relação à implantação de políticas públicas necessárias. A polícia deve continuar no Complexo do Alemão, porém sem políticas públicas que melhorem a qualidade de vida daquelas comunidades, não poderemos falar em sucesso”, ressalva.

Seres pensantes
“A solução para o RJ é a mesma solução para a grande maioria dos problemas em qualquer município brasileiro: educação”, essa é a definição de Flávio Ramos. De acordo com ele é necessário educar os jovens para pensar, para não incorrer no risco de repetir a situação vivenciada no RJ em outras cidades brasileiras. A luta do tráfico pela conquista de território perdeu uma batalha. Ramos alerta que os criminosos se deslocarão para outros lugares. “O problema agora do RJ e dos demais estados limítrofes vai ser exatamente esse: evitar que esses meliantes se desloquem e tomem territórios. E para fazer isso é necessário que o estado esteja presente nas comunidades, nos lugares mais pobres, levando a elas condições sociais para que tenham seu desenvolvimento e educação”, considera.

Quem financia
Schenkel pontua que o tráfico sobrevive do lucro da venda de drogas. “O dinheiro daquele que se intitula ‘apenas’ um inofensivo consumidor de drogas financia toda a estrutura do crime organizado e é responsável por milhares de homicídios, roubos e outros delitos graves.  Algum lunático diria:  basta legalizar as drogas. Utópico erro. A legalização de drogas consideradas menos pesadas jamais vai frear o consumo, ao contrário, irá somente aumentar a legião de usuários e dependentes químicos. Jamais vai estabelecer o controle estatal sobre a produção e distribuição das drogas”, rebate. Para concluir ele explica que ao lado da droga legal, haverá sempre imensa quantidade de droga ilegal - com menor preço, qualidade, ausência de impostos, e maior lucro - com significativa dificuldade de controle, com um mercado muito maior e toda a gama de crimes conexos. 

E se não houvesse câmeras?
Várias pessoas questionaram se a polícia teria uma reação diferente com os traficantes que fugiram, caso as emissoras de televisão não estivessem transmitindo ao vivo a ação. Os entrevistados de ON acreditam que isso não teria feito diferença.

Vanderlei Farias, sociólogo - Não há dúvida de que as câmeras têm um poder regulador, porém não acredito que a Secretaria de Segurança Pública autorizaria tal ação. Isso geraria uma chacina na favela com consequências enormes para a política interna e externa do país. E, acima de tudo, seria uma afronta ao estado de direito, aos direitos humanos e aos tratados internacionais.

Flávio Ramos, policial - Polícia não foi feita para matar, mas para prender. Se a polícia tivesse executado esta ação provavelmente hoje não estaríamos fazendo comentário acerca da ação bem sucedida, mas sim de uma carnificina. A polícia agiu de forma correta. Uma parte da população tem a noção de que teria que ter matado os supostos marginais, mas a população tem que compreender que existem aspectos legais e não podemos passar por cima deles. Policial não é juiz em tempo de guerra para decretar a morte de um inimigo.

João Darci Gonçalves da Rosa, tenente coronel da BM – o número de mortos foi bem razoável, mas se a imprensa não tivesse passando as imagens para todo o país, talvez pudesse ser diferente. Porém como a ação foi planejada, os comandantes deram as ordens no sentido de que fossem cumpridas com o menor número de perdas de vidas. Não termos policiais mortos foi a grande vitória da polícia. O policial tem recebe a missão e ele tem de executar dentro da legalidade.

Gostou? Compartilhe