Gerson Urguim/ON
Na última segunda-feira (20), o Estado assistiu a um caso de violência doméstica que terminou em tragédia. Uma mulher de 28 anos foi morta pelo ex-marido após ter sido mantida em cárcere privado por 15 horas, em Guaíba, na Região Metropolitana. Ela foi impedida de sair de casa após uma suposta briga do casal. Apesar do cerco policial e das negociações, o ex-marido matou Luciane Rodrigues de Souza e depois se suicidou.
Casos assim, com este desfecho trágico não acontecem todos os dias, porém, a violência doméstica continuada pode sim, levar tanto a vítima quanto o agressor a estes extremos.
Em Passo Fundo, a Delegacia da Mulher atende diariamente, em média, dez ocorrências de crimes contra a mulher. Segundo a delegada titular da Delegacia da Mulher, Claudia Cristina Santos da Rocha Crusius, as ocorrências mais comuns são ameaça, injúria e lesão corporal. “A ameaça acontece quando se promete a alguém um mal injusto e grave, a injúria ofende a moral da vítima, especialmente com xingamentos e a lesão é decorrente das agressões sofridas”, explicou a delegada.
Somente no último final de semana foram registradas 34 ocorrências. “É uma questão cultural. Os homens não conseguem olhar as mulheres como seres que têm obrigações, deveres, direitos, vontades. Isto deve mudar, mas é preciso que as mulheres vejam que elas também possuem capacidades”, disse. Até o último dia 16 de junho, haviam sido registradas 1760 ocorrências somente em 2011.
Ao contrário do que se pensa, a Delegacia da Mulher não atende apenas a casos de violência doméstica, apesar de ser a maioria dos casos atendidos e sim, todos os crimes praticados contra as mulheres. “Atendemos ocorrências de lesão corporal, exceto as de trânsito, crimes sexuais, como estupro e crimes contra a honra e que envolvam a discriminação de gênero, dentro daquilo que a sociedade convencionou, em que ser homem é ser a pessoa forte e mantenedor da casa e que manda na família e a mulher é um ser frágil e delicado. Mas, por exemplo, se duas mulheres brigarem na rua, a ocorrência será atendida por nós também. O que interessa para nós é a mulher enquanto vítima”, afirmou.
Estatística
Com o advento da Lei Maria da Penha, criada em 7 de agosto de 2006, o número de casos de violência contra a mulher registrados aumentou. A lei protege a mulher contra a violência em âmbito doméstico e familiar. “Temos tido um aumento gradativo de 400 a 500 ocorrências por ano. A lei prevê que o agressor pode ser retirado de dentro de casa, preso em flagrante, uma série de coisas que podem acontecer. Não aumentou o número de agressores, o que aumentou foi o número de mulheres dispostas a procurar a delegacia. É o Estado reconhecendo que as agressões ocorridas dentro de um ambiente de afeto, não interessando se o agressor é noivo, namorado ou esposo, têm uma repercussão diferente”, esclareceu Claudia.
Ainda de acordo com a delegada, apesar do número de atendimentos ter aumentado, assim como a consciência das mulheres agredidas de que esta agressão não é passível de ficar incólume, um grande número de mulheres agredidas acaba não dando prosseguimento às ações judiciais contra os agressores. “Em torno de 75% das mulheres não dão continuidade às ações. Elas vêm até aqui, registram a ocorrência, representam contra o agressor, requerem as medidas protetivas, e na audiência preliminar acabam desistindo da ação”, disse.
O perfil da mulher agredida é, na grande maioria, de mulheres de nível social mais baixo, com escolaridade baixa e com muitos filhos, que não trabalham e dependem economicamente do companheiro. “Isto acontece em todas as classes sociais, mas as vítimas que mais nos procuram são as mulheres de classe mais baixa, corresponde a cerca de 80% dos nossos registros. Elas sofrem com, além da questão da dependência econômica, com o fato de terem muitos filhos, o que não permite que elas estudem, ter um emprego formal, inserir-se no mercado de trabalho. Seria necessária uma estrutura que propiciasse à essas mulheres condições de ter uma nova vida”.
Casa da Mulher é alternativa para vítimas
A Casa da Mulher foi criada em 2003 para atender às vítimas de violência doméstica em Passo Fundo. O imóvel, alugado pela Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social (Semcas), responsável pela manutenção, tem capacidade para atender até 14 pessoas. Na última quarta-feira (22), não havia nenhuma mulher abrigada no local, que tem grande fluxo de hóspedes. Em geral, as vítimas permanecem na casa após o registro da ocorrência de agressão até a primeira audiência judicial.
Na casa, as mulheres recebem atendimento psicológico, trabalho com assistente social e uma advogada. “Além disso, as mulheres também recebem roupas, alimentação, já que geralmente elas chegam aqui sem roupa nenhuma. Elas ficam aqui como se fosse a casa delas, cuidam da casa, dos filhos, fazem o trabalho de arteterapia.”, explicou Cátia Plaquitken, coordenadora da Casa da Mulher. A casa disponibiliza também um trabalho de arteterapia. Além da coordenadora, também trabalham no local seis monitoras, dois vigilantes. A casa funciona 24 horas para poder receber as vítimas a qualquer hora do dia e as mulheres abrigadas também são acompanhadas às consultas médicas, atendimento odontológico e as crianças em idade escolar são levadas à escola por uma van e também recebem atendimento psicológico. As mulheres também são monitoradas no cuidado com os filhos no período em que ficam abrigadas. No ano passado, foram abrigadas 49 mulheres e 94 crianças. Este ano, até o dia 22 de junho foram 36 mulheres abrigadas e 135 crianças, quase quatro filhos para cada vítima abrigada no local. “A maioria dos casos é de pessoas pobres, com baixa escolaridade. Mas já tivemos aqui pessoas com ensino superior, que trabalham, possuem independência financeira, e que o companheiro não. As pessoas acabam se acostumando com esse tipo de violência”, contou.
Apesar da segurança e do sigilo que a casa oferece, a vítima de agressão não é obrigada a permanecer no local até a data da audiência judicial. “A mulher tem a liberdade para sair na hora que quiser, pode voltar para casa, ou seguir para a casa de parentes. E esta é uma vontade que temos de respeitar. É um choque muito grande para a mulher sair da delegacia e vir direto pra cá. É até mesmo um choque muito grande para as crianças, mas ainda assim, elas conseguem lidar melhor com a situação por continuarem a freqüentar a escola. Para as mães é mais complicado”, esclareceu Cátia.
O abrigo para as mulheres permanece no mesmo local por, em média, dois anos. Após este período, o abrigo é transferido para outro local para evitar que os agressores descubram onde a vítima se encontra. “A Lei Maria da Penha prevê que o agressor pode ser qualquer pessoa do círculo familiar, um irmão, ex-marido, ex-namorado. Mas na maioria dos casos o agressor é o marido ou companheiro”, disse.
Psicoterapia ameniza o trauma da violência
De acordo com a psicóloga Mirna Branco, coordenadora do Centro de Estudos, Prevenção e Atendimento à Violência (Cepavi), que funciona no Campus 3 da Universidade de Passo Fundo, o agressor, na maioria das vezes é usuário de substâncias psicoativas. “São pessoas violentas, agressivas, com transtornos emocionais associados. A pessoa que não tem um transtorno emocional não vai agir desta forma. Boa parte dos agressores faz uso de álcool e outras substâncias psicoativas”, explicou.
Considerando-se que, a mulher dificilmente denuncia o agressor após a primeira demonstração de violência e passa por este processo durante um determinado período, as conseqüências da violência contínua podem ser desastrosas para a vítima. “A violência acontece, em um primeiro momento, em um grau menor. São vários tipos de agressão, podendo ser física ou psicológica, que vai se intensificando com o tempo. A mulher não denuncia o agressor por vários motivos, seja pela dependência financeira, emocional, os filhos. A vítima passa a acreditar cada vez mais fragilizada, acreditando menos em si mesma, o que pode levar à depressão, transtorno de estresse pós traumático, várias conseqüências emocionais, com baixa autoestima, não acreditando que possam, elas mesmas, romperem com isso, com este ciclo da violência. É como se o agressor tivesse o direito de agir desta forma, como se a mulher fosse propriedade dele”, disse.
A violência psicológica também pode acarretar problemas às vítimas, embora muitas vezes não seja visto como algo danoso. “O que a gente percebe é que, às vezes, em relação à humilhação, as mulheres nem estão percebendo de que se trata de violência. Não querer que a mulher trabalhe, que use determinado tipo de roupa, que não quer que a mulher saia, que tenha amigas, que use maquiagem no rosto. Tudo isto é violência”, explicou.
No Cepavi, podem ser atendidas as famílias, a vítima e até mesmo o agressor. “Muitas vezes, além da mulher, também atendemos os filhos. Eles também acabam, dentro desta violência contra a mulher, sendo vítimas. Os filhos que estão vendo aquela situação, futuramente, poderão ser geradores de violência, por estarem vivenciando este tipo de ambiente”, esclareceu.
A coordenadora do Cepavi também entende que a violência contra a mulher é, também, uma questão cultural, que é ensinado à mulher desde a infância. “Elas aprendem isto em casa, no convívio com as outras pessoas. Ninguém diz à elas que não é necessário submeter-se às agressões. Algumas delas chegam a imaginar que deve ser desta forma”, disse. Ainda segundo Mirna, a violência não acontece somente entre os casais com uma relação conjugal oficializada. “Hoje em dia é muito comum ocorrer a agressão antes mesmo do casamento. Sabemos que isto existe, mas o que acontece é que nesses casos, muitas vezes ao ser agredida, a mulher também acaba batendo. Os maridos e companheiros, bem como os ex, são os que mais agridem. Eles são os que ameaçam e acabam cumprindo, ás vezes até matando a vítima “.