"Vidas transportadas como bagagem"

Usuários da linha de ônibus que registrou acidente com nove mortos relatam descaso da empresa. Ex-motorista conta como era a rotina de trabalho

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O ônibus que fazia o trajeto na madrugada deste domingo foi fabricado em 2006.  A vida útil de veículos para esta finalidade é de 10 anos.O ônibus que fazia o trajeto na madrugada deste domingo foi fabricado em 2006.  A vida útil de veículos para esta finalidade é de 10 anos.
O ônibus que fazia o trajeto na madrugada deste domingo foi fabricado em 2006. A vida útil de veículos para esta finalidade é de 10 anos.
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Motoristas cansados, pressionados a cumprirem horários, ônibus com problemas, passageiros com medo. Esses são alguns dos elementos que culminaram com a tragédia vivenciada pelo Rio Grande do Sul e Santa Catarina no último domingo (10) quando nove pessoas morreram em decorrência de um acidente de trânsito com um ônibus que saiu de Passo Fundo com destino a Florianópolis. Passageiros, sindicato e ex-motorista da empresa responsável pelo trajeto relatam as experiências vivenciadas.

Informações como excesso de horas trabalhadas e pressão pelo cumprimento de metas chegam rotineiramente ao Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários de Passo Fundo. De acordo com o presidente Gilberto Boeira a pressão psicológica sofrida pelos motoristas para cumprirem os horários e o cansaço devido às excessivas horas de trabalho são fatores que contribuem para o aumento do risco de acidentes nas estradas. Segundo ele, em uma situação ideal, após seis horas de trabalho o motorista deveria poder descansar para então poder retornar à atividade. No entanto, na prática, não é o que acontece. Com aumento da demanda, principalmente nesta época do ano, geralmente as empresas não admitem trabalhadores para a temporada em número suficiente, o que acaba sobrecarregando os motoristas.

Conforme Boeira a cada viagem é preciso que seja feita a revisão dos veículos a fim de garantir a segurança das pessoas que são transportadas por ele. No entanto, ele pondera que mesmo assim podem ocorrer problemas mecânicos no percurso. Sempre que um motorista entrega um ônibus na garagem da empresa, ou mesmo na troca de motorista, ele preenche um check list no qual qualquer alteração percebida pelo condutor é registrada para que os mecânicos da empresa possam tomar as decisões.

Manutenção
A indicação de um problema no check list preenchido pelo motorista nem sempre significa que ele será resolvido. O ex-motorista da empresa que será identificado apenas como Marcos trabalhou durante cinco anos na linha Passo Fundo - Florianópolis. Ele relata que geralmente os mecânicos conferem os problemas indicados no documento assinado pelos condutores, mas que houveram casos em que um mesmo problema relatado mais de uma vez para a empresa não foi solucionado e houveram pedidos para que não fosse incluído novamente no check list. Do tempo em que atuou na empresa, ele conta que perdeu um colega de trabalho que ia para Curitiba. Em função do cansaço pelas horas seguidas de trabalho ele cochilou e acabou batendo de frente em um caminhão. Em outro caso, um motorista chegou a abandonar o ônibus e os passageiros em uma rodoviária devido ao número de reclamações dos passageiros relacionadas às condições do carro disponibilizado pela empresa.

Outro problema relatado por ele diz respeito a falta de ônibus extras para substituir carros que eventualmente pudessem apresentar problemas. Nesses casos, quando era possível, o motorista era orientado a seguir a viagem mesmo com alguma falha identificada. De acordo com o relato, ele chegou a viajar com ônibus com problemas no ar condicionado em veículos cujas janelas não podiam ser abertas, falhas na iluminação interna, e até veículo que não podia ser desligado devido a uma falha no sistema de arranque. Outra prática comum é o fretamento de veículos de outras empresas que muitas vezes os motoristas não estão habituados a dirigir.

Segundo Marcos, o motorista é obrigado a passar instruções referentes às saídas de emergência, uso do cinto e botão de emergência existentes nos veículos.

Medo
Uma usuária da linha que prefere não se identificar conta que utiliza o serviço frequentemente. Natural de Passo Fundo, ela mora em Balneário Camboriú, onde estuda. Em uma viagem realizada em novembro do último ano ela conta que os passageiros que estavam no carro que chegou a Passo Fundo e continuaria o trajeto a Florianópolis desceram do veículo e se negaram a seguir a viagem devido às condições apresentadas. Apenas após quase duas horas de espera a empresa enviou outro carro para seguir viagem. Mesmo com a troca de carro, a estudante relata que a viagem não foi tranquila. O ônibus balançou durante todo o trajeto e a empresa tratou com descaso os passageiros ao final do percurso. No Natal, ela teve de pegar novamente um ônibus da mesma empresa para vir a Passo Fundo. “Viajei com medo, preocupada porque eles voam, eles correm demais, não tem como viajar tranquilo E feriado ainda pior”, relata.

Dúvidas, muitas dúvidas
A jornalista passo-fundense Raquel Vieira também costuma utilizar os serviços da empresa. Ela relata que nos dias 21 e 23 de dezembro fez exatamente a mesma rota, indo e vindo de Passo Fundo a Florianópolis. “Por vezes, ao embarcar já me indaguei se a vistoria do carro estava em dia, se os pneus não estavam carecas, se eram boas as condições do veículo, se o motorista não deveria ter um assistente, caso batesse o sono (pode acontecer, afinal ele é humano) em uma viagem de nove horas. Na última viagem de PF a Floripa, o carro parecia estar sem amortecedores mediante tantos solavancos. Em outra, anterior, a velocidade estava semelhante aos 120/130 km/h e, em alguns momentos, cheguei a rezar para chegar logo e com vida”, conta sobre as situações já vivenciadas na linha. “Agora, como consumidora, exijo que a investigação sobre as causas do acidente vá em frente. Quero saber a idade desses ônibus que transportam vidas como se fossem apenas bagagens. Quero que fique visível a quem e como devo reclamar caso passe por perrengues e perigo nessas viagens, e, de preferência, que esse caminho não seja burocrático. Somos consumidores, pagamos (e bem caro!) pelo serviço e temos direito de chegar vivos no nosso destino, como infelizmente não aconteceu neste caso”, enfatiza.

“Empresa exerce um monopólio”
O engenheiro agrônomo, Chefe da Unidade da Embrapa Trigo de Passo Fundo, Sérgio Roberto Dotto é passageiro assíduo das linhas de ônibus da empresa que ligam Passo Fundo a Florianópolis e relata que os problemas durante as viagens são frequentes. Segundo ele, durante os seis anos que faz o percurso, a viagem foi interrompida quatro vezes.  Ele viaja ao menos uma vez ao mês, e as condições dos ônibus são precárias. “São ônibus velhos”. Na última viagem que fez retornando de Florianópolis, no dia 20 de dezembro, o ônibus saiu da rodoviária e precisou retornar a garagem para ser substituído por problemas mecânicos. No dia 23, ele utilizou o serviço para viajar até a capital catarinense, mas, há 40 km de Passo Fundo, a viagem foi interrompida por problemas mecânicos e os passageiros precisaram esperar por 1h até que outro carro da empresa chegasse ao local para que os passageiros pudessem seguir viagem. “Esse acidente que aconteceu é consequência do uso de ônibus velhos para fazer o trajeto”. Ele afirma que o monopólio que a empresa exerce contribui para que ocorra a utilização de veículos em más condições. “A empresa exerce um monopólio nas linhas que liga o Estado até Santa Catarina e, as entidades como o DAER e o DNIT, não tomam providencias diante desse monopólio”. Dotto já denunciou a empresa duas vezes ao DNIT de Florianópolis, há dois anos, e até agora, não obteve nenhum retorno.

Empresa diz que não expõem motoristas a jornadas excessivas
O advogado da Reunidas, Vinicius Martins preferiu não se manifestar em relação aos problemas de manutenção e estruturais relatados pelos passageiros que utilizam o serviço. Segundo ele, apenas dúvidas em relação ao acidente seriam respondidos já que os esforços estão concentrados para sanar essas questões.

Sobre a manutenção dos veículos ele afirmou que todos passam por manutenção constante, mas problemas podem ocorrer durante as viagens principalmente durante longos trajetos, como este, que trafega por aproximadamente 1.000 km. Martins aponta que o regime de horário dos motoristas é de 8h diárias, com intervalos de 30 min a cada quatro horas ou de 1h no meio do turno. Segundo ele, a fiscalização é rigorosa e, por isso, os intervalos são cumpridos e programados durante as rotas. O tempo estimado de viagem também sofre “severas fiscalizações” e, caso a empresa não cumpra os horários determinados são multados. Para não colocar os motoristas em situações de tensão, todos os horários das linhas possuem “uma folga” para não ocorrer atrasos.

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