Classe social determina prisão de criminosos?

Reincidência, clamor público, gravidade do delito ou melhores condições de recorrer: o que determina, realmente, quem fica preso preventivamente?

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Ano 2014.

Dia 30 de maio: Polícia Civil realiza Operação Fim de Festa e prende 10 pessoas de classe média e alta por tráfico de drogas sintéticas.
Dia 08 de outubro: Operação Beco Sem Saída II prende 11 pessoas de classe baixa por envolvimento com tráfico de drogas.
Dia 06 de novembro: Mais uma operação da Polícia Civil contra venda de entorpecentes. Dessa vez, 17 presos. Todos de classe média e alta.
Dos 38 presos, você sabe quais foram julgados até hoje?

Há muito que a discussão em torno da Justiça seletiva divide opiniões na sociedade. Mas, embora os argumentos tenham por base a letra fria da lei, os números demonstram que pessoas pobres que cometem crimes vão para cadeia mais cedo e lá ficam por muito tempo. No caso das três operações da polícia em Passo Fundo contra o tráfico de drogas (citado no gráfico acima) os criminosos que permaneceram presos pertencem a classe social menos favorecida: são pobres. Os demais denunciados por tráfico de drogas e associação para o tráfico, que ainda não participaram nem da primeira audiência, aguardam julgamento em liberdade sob o argumento de não colocarem em risco a ordem pública. São pessoas de classe média alta.
Conforme o juiz que responde pela 2ª Vara Criminal da Comarca de Passo Fundo, Alan Peixoto de Oliveira, a reincidência é um dos principais fatores que determina a liberdade provisória dos réus. “Quando uma operação policial pega um extrato mais privilegiado da sociedade, geralmente pega pessoas que não tinham envolvimento com crimes, ou seja, tecnicamente, réus primários. Ao contrário, a camada menos favorecida, a que mora na vila, vai ter diversas passagens pela polícia, uma reiteração de conduta criminosa”, diz.
Nessa linha de pensamento, o magistrado discorre sobre a presunção que pode determinar a concessão do habeas corpus, conforme a renda dos réus. “Se supõe que, por serem pessoas com condições de prover seu próprio sustento de outra maneira, que não a venda de drogas, uma vez alvos e presos, dificilmente voltem a reincidir na prática criminosa”, sugere.
Responsável por coordenar diversas investigações de tráfico de drogas, em especial as que culminaram nas operações citadas anteriormente, o titular da 1ª Delegacia de Polícia, Diogo Ferreira, discorda: “Não é porque ele é réu primário ou que tenha melhores condições financeiras, que ele não pratica o mesmo ato de violência contra a sociedade. O tráfico de drogas, do crack ao ecstasy, é danoso. Se a venda dos entorpecentes não oferecesse perigo para ninguém, não estaria tipificada em lei”, afirma.
O delegado também acrescenta que considera o delito, quando praticado pelas classes mais altas, ainda mais nocivo e mais propenso a desestabilizar a ordem pública. “Esse ‘réu primário’, em razão da posição social, pratica o crime mais ocultamente, o que torna a investigação mais trabalhosa: mais difícil de identificar e de obter provas para encerrar o inquérito. Digamos, então, que esse sujeito de classe média alta, se não tivesse os meios que tem, já teria sido percebido antes, visto antes, preso antes e, consequentemente, seria reincidente como o traficante da vila”, expõe.
Mas, conforme Oliveira, se os crimes são iguais e o agente que praticou o delito tem o mesmo perfil de conduta (crime grave, de violência, que causa comoção, réu primário ou reincidente, entre outros requisitos que determinem a prisão preventiva), ele vai responder o processo criminal de forma igualitária, independentemente do meio social em que vive. “Hoje, se for preso um traficante na vila, em Passo Fundo, e ele ainda não tiver passagem pela polícia, tem uma grande possibilidade de responder esse processo solto”, diz.


Casos concretos

Operação Fim de festa
Crime: tráfico de drogas
Classe social dos investigados: média; média alta; alta
Presos: 10
Em liberdade provisória: 10

Pelo menos um dos envolvidos no esquema tem uma vasta ficha criminal, por tráfico de drogas, roubos e, inclusive, homicídios. Ele, mesmo reincidente, obteve liberdade provisória em menos de 20 dias, junto com os demais.

Operação Beco Sem Saída
Crime: tráfico de drogas
Classe social dos investigados: baixa
Presos: 11
Em liberdade provisória: nenhum

Desses, apenas dois não tinham antecedentes criminais e, mesmo sendo réus primários, não tiveram a possibilidade de responder o processo em liberdade. Eles continuaram presos até a data do julgamento, quando foram condenados a cumprir a pena pelo mesmo delito que o grupo anterior.

Operação Rede Social
Crime: tráfico de drogas
Classe social dos investigados: média; média alta; alta
Presos: 17
Em liberdade provisória: 17

Entre os 17, pelo menos um também era reincidente e apresenta uma ficha com diversas passagens por tráfico de drogas. Pelo menos dois, foram presos em flagrantes por porte ilegal de arma de uso restrito. Como o esperado, pouco mais de 15 dias depois, todos voltaram às ruas, onde permanecem até hoje, aguardando as audiências e o julgamento, sem pressa.

O crime é o mesmo

“O fato é o mesmo: tráfico de drogas. O risco para a sociedade e para a ordem pública também é o mesmo: o usuário de crack assalta, furta, coloca em risco a vida da população. O usuário de ecstasy ingere a droga em uma festa e sai dirigindo sob os efeitos alucinógenos, também colocando em risco a vida das pessoas”, exemplifica o delegado, ao analisar como prosseguiram os processos das operações deflagradas.

Por que alguns oferecem risco e outros não?
Os dois grupos que foram soltos obtiveram a liberdade provisória, em 2ª instância, sob um dos argumentos mais comuns utilizados pelos advogados, de que os réus não colocam em risco a ordem pública. O magistrado destaca que, mesmo que um grupo responda um processo em liberdade, se for condenado ao final do procedimento, vai ter que cumprir a pena, seja ela de reclusão ou não, seja o indivíduo de classe alta ou baixa. “E aí sim, depois de condenado, se ele voltar a responder um processo criminal pelo mesmo fato, ele vai responder preso, porque finalmente se comprova que a simples liberdade dele, pode causar prejuízo à ordem pública”, esclarece o magistrado.
Já para o promotor criminal, Júlio Ballardin, qualquer indivíduo que foi investigado ou flagrado traficando, sempre vai oferecer riscos para sociedade, antes mesmo de condenação. “É um crime muito grave, que abala, sim, a ordem pública. Famílias terminam desestruturadas e vidas inteiras são jogadas fora por causa do vício, mas parece que apenas a polícia e a promotoria estão preocupadas com a sociedade”, desabafa. O delegado concorda: “Qualquer droga, é droga. O traficante, ao realizar a venda, além de infringir a lei, coloca o ilícito no comércio para consumo de diferentes pessoas, que reagem de forma diferente aos efeitos”, diz.
De acordo com Ballardin, a lei permite uma gama de recursos aos acusados. “É muita possibilidade para recorrer, mesmo depois de todo um trabalho realizado pela polícia e reiterado pelo Ministério Público. Todo um sistema feito para favorecer quem comete o crime, de modo que parece que enxugamos gelo”, diz e acrescenta: “Tudo é permitido pela lei, mas melhor aproveitado por quem tem melhores condições financeiras, que vai esgotar todas as possibilidades”, pontua.

Eles conseguiram
Tão é verdade a afirmação do promotor, sobre o aproveitamento dos recursos entre as classes mais favorecidas, que nesta semana se observou mais um deferimento de liberdade provisória. Os réus haviam sido presos no mês de fevereiro deste ano, durante a “Operação Fachada”. O grupo, formado por quatro homens e uma mulher, pertence a um extrato mais elevado da sociedade e já havia encaminhado recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), depois de ter o pedido negado no Tribunal de Justiça.
O STJ não precisou, entretanto, demandar tempo para avaliar o pedido, pois todos obtiveram a liberdade concedida pelo juiz da 2ª Vara Criminal de Passo Fundo. Foram seis meses de reclusão, enquanto o processo correu com celeridade. A última audiência está marcada para o próximo dia 29, depois, basta julgar.
De acordo com Oliveira, a prisão preventiva, que é uma prisão antes da sentença, é excepcional. “Uma vez que ele está preso sem sentença, é importante que se defina logo a situação: que seja condenado logo, ou absolvido logo para evitar que cumpra prisão e depois seja absolvido”, explica. Quando os réus obtêm liberdade, o processo criminal, consequentemente, deixa de ser prioridade.
Sem vagas nos presídios
Indiretamente, conforme o juiz, a superlotação das penitenciárias acaba pesando nas decisões de manter os presos recolhidos preventivamente. “Hoje o que abre vaga em presídio, é a fuga de preso. Não existe um único presídio no Estado que não tenha, pelo menos, o dobro da capacidade. Esse é um fator que acaba sendo considerado, porque no momento em se coloca uma pessoa na prisão, cautelarmente, sabemos que não vai estar lá em recuperação, bem pelo contrário”, pondera e continua: “Por que um criminoso age como quer na rua: rouba, mata, faz e acontece? Porque a pior coisa que pode acontecer pra ele, com o sistema prisional que temos, é ser mandado para um lugar onde a turma dele é quem manda. Isso não é uma punição”, completa.
Na mesma linha de pensamento, Oliveira considera que réus primários devem estar soltos até serem condenados, independente de classe social, porque quando um indivíduo entra numa penitenciária pela primeira vez, ele é obrigado a se enquadras nas regras dos presídios, comandadas por facções, na maioria das vezes. “O Presídio Central de Porto Alegre, por exemplo, nem itens de higiene dão aos detentos. A facção dá, mas cobra deles quando saírem”, conclui.
Prazos
Além da reincidência, outro motivo observado para a outorga da liberdade provisória, é o cumprimento dos prazos para encerrar a ação. “As vezes não se consegue processar o réu em um tempo razoável. E, se o cidadão permaneceu durante um ano preso e o Estado não conseguiu formar o juízo da culpa, ele é beneficiado com liberdade pela própria decisão do juiz da causa ou por habeas corpus no Tribunal do Júri e até no STJ”, comunica.

Operação Beira Trilho
Crime: tráfico de drogas
Classe social dos investigados: baixa
Presos: 12
Em liberdade provisória: nenhum
Operação Fachada
Crime: tráfico de drogas
Classe social dos investigados: média, média alta e alta
Presos: 5
Em liberdade provisória: todos


Há mais de um ano os 12 indivíduos presos na Operação Beira Trilho estão presos. Todos os réus foram ouvidos com a celeridade que o processo demanda, mas aguardam, desde maio deste ano, os advogados entregar a alegação final com seus últimos argumentos. Diferentemente dos capturados na Operação Fachada, o grupo que foi preso sete meses antes, continua em cárcere.

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