Uma nova oportunidade

Através de convênio com o Estado, indústria de telhas busca mão de obra entre apenados do regime semiaberto

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A falta de oportunidade no mercado de trabalho contribui com o alto número de reincidência, que chega a 70%A falta de oportunidade no mercado de trabalho contribui com o alto número de reincidência, que chega a 70%
A falta de oportunidade no mercado de trabalho contribui com o alto número de reincidência, que chega a 70%
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“Caí por 14 e 155. Maldita hora que peguei uma arma na mão.” A frase é de um detento do regime semiaberto do Presídio Regional de Passo Fundo, ao se referir sobre os crimes de porte ilegal de arma de fogo e furto, pelos quais cumpre pena há aproximadamente um ano. Nesse tempo, Luís Carlos, 30 anos, acompanhou de longe o crescimento do filho, de 1 ano e seis meses, e não viu o menino dar seus primeiros passos. Também observou o aluguel da casa onde mora sua família, acumular, sem nada poder fazer.
Com seis meses de condenação cumpridos, Luís Carlos foi beneficiado com a progressão de pena e passou do regime fechado, ao semiaberto. No Instituto Penal, por destacar-se quanto ao bom comportamento, foi alojado na área dos trabalhadores. Então iniciou as buscas por emprego, mas todas as vezes que saiu atrás de oportunidade, encontrou as portas fechadas. “As pessoas são ressabiadas em relação a nós, porque muitos saem de lá (albergue do presídio) e voltam presos, pouco depois. Basta uma laranja podre no cesto, para estragar o resto”, lamenta.
São essas “laranjas podres” que tornam a vida da comunidade carcerária mais difícil. De acordo com a psicóloga do Instituto Penal de Passo Fundo, Michele Fabiane Sebben, ao contrário do que se pensa, a grande maioria dos apenados pretende reestruturar a vida, após cumprir pena. “Entre os presos, 20 % são os psicopatas – aqueles que não querem emprego; que estarão sempre reincidindo. Os demais têm a consciência do erro e têm vontade de trabalhar, de reorganizar suas famílias, mas, para isso, eles precisam de uma chance”, certifica.

Um voto de confiança
Essa chance surgiu para Luís Carlos e outros três detentos há duas semanas, quando os quatro começaram a trabalhar em uma indústria de telhas. A empresa não só abriu as portas para os apenados, como procurou por eles através de um convênio firmado com o Estado. Os quatro sócios da WW Telhas se despiram das desconfianças mais comuns da sociedade e enxergaram dentro do cesto, as laranjas boas.
Conforme um dos sócios-proprietários, Jerônimo De Boni, a responsabilidade social faz parte do tripé da empresa. “Pensamos nos prós e contras, com certeza, mas a nossa consciência é essa: sem oportunidade, não tem como eles mostrarem suas capacidades. Todo ser humano merece a chance de se enquadrar no mercado de trabalho”, diz.
Chance que não poderia surgir em melhor hora para Luis Carlos. “Com essa oportunidade eu posso pagar o aluguel atrasado da casa onde moram minha esposa e filho. É uma grande ajuda”, afirma, sem esconder a satisfação.
Enquanto realiza suas atividades, o detento narra sobre os erros do passado e seu arrependimento e conta sobre as projeções do futuro ao lado da família. “Minha esposa, mãe e sogra, estão muito felizes. Por mim, quando terminar a pena, continuo aqui. Fui muito bem recebido, até pelos colegas”, menciona. Por De Boni, ele também pode continuar. “A intenção é mantê-los, caso eles queiram e se adaptem ao serviço”, fala.

Vantagens

A exemplo da empresa pioneira no convênio, Michele acredita que outros empresários possam aderir à ideia e procurar por mão de obra na penitenciária, a fim de fazer a diferença na vida de outros apenados. “Nós temos muita gente boa lá dentro”, reitera e destaca que as empresas também são beneficiadas com o convênio. “No momento em que se contrata mão de obra prisional, a empresa não é obrigada a pagar os encargos trabalhistas”, enfatiza.
Conforme De Boni, o benefício também foi um dos determinantes para a contratação dos operários. “Nós descobrimos uma empresa que trabalha só com detentos, no Espírito Santo. Então fizemos uma consultoria com a empresa que produz a nossa matéria prima e eles nos sugeriram que procurássemos pelos apenados, até por uma questão de redução de custos”, comenta.
Decididos, os sócios da WW Telhas procuraram a 4ª Delegacia Regional da Susepe – com sede em Passo Fundo – quando tiveram o conhecimento sobre um convênio que já existia: o Protocolo de Ação Conjunta (PAC). “Foram seis meses para que conseguíssemos reunir a documentação necessária e obter todas as assinaturas. Com o convênio na mão, procuramos o Instituto Penal, por onde foi encaminhada a seleção das vagas”, narra.
Os quatro homens foram selecionados a partir de alguns requisitos. Conforme a psicóloga, foi realizada uma triagem entre os que demonstraram interesse no trabalho. Dentre eles, preferiram-se as pessoas que ainda tinham um tempo maior de pena para cumprir, a fim de reduzir a rotatividade na indústria, além do bom comportamento. “Além dos que já estão operando, o convênio prevê vaga para outros seis homens”, diz.
O sócio-proprietário da empresa, que conta com 12 funcionários no total – entre detentos e demais –, explica que procurou aumentar o número de vagas do convênio, para que todo o procedimento não seja repetido quando existir um novo contrato. “Abrimos margem para 10 pessoas do semiaberto, mas começamos com menos para ver se funciona: como eles se portam, se eles se adaptam. Eu acredito que o ano que vem já teremos um quadro maior”, completa.

 

Rotina

No início da manhã, um veículo da empresa aguarda os funcionários em frente ao IPPF. Eles iniciam o trabalho às 8h. Como auxiliares de produção, atuam em diversos setores, como limpeza da matéria prima, confecção dos colchões que serão vulcanizados, além de corte e acabamento das telhas. Durante o horário de almoço, eles permanecem na empresa, que oferece a alimentação. Já as 17h48, quando encerra o expediente, os detentos são levados de volta à casa prisional.

Não é prisão perpétua

De acordo com a psicóloga, para que existam essas oportunidades como a de Luis Carlos e seus três colegas, a comunidade pode começar lembrando que após determinado período, o detento que cumpriu pena, retorna à sociedade. “Não é prisão perpétua. Eles vão sair do presídio e precisam de espaço no mercado de trabalho. Eu tenho certeza que se eles tivessem mais oportunidades, o índice de reincidência – que chega até a 70% –, seria bem menor”, salienta.
O promotor criminalista, Marcelo Pires, concorda quando fala que a falta de assistência ao apenado é um dos fatores que levam à reincidência. “Dificilmente o apenado encontra facilidade para o emprego, quando ele termina de cumprir a pena. Ele já vem de uma classe social mais desfavorecida, sai sem ter apoio do Estado, de outra instituição e da própria sociedade”, comenta.
Pires ainda menciona a situação econômica do país como um agravante à situação dos detentos. “Estamos com 12 milhões de desempregados no país, hoje. Se está tão difícil arrumar um emprego para pessoas que não vêm do meio criminal, para um ex-detento, que vai concorrer à mesma vaga, é muito pior”, completa.
No tempo de reclusão...

Houve um tempo, em que cursos profissionalizantes eram ministrados dentro da casa prisional. Esse tempo, entretanto, acabou. O delegado penitenciário, Rosalvaro Portella esclarece: “Não temos a possibilidade de firmar um convênio com empresas que pretendam atuar dentro da casa prisional, por falta de estrutura”, diz, mas reitera a necessidade de emprego quando se trata da população carcerária. “Inclusive por uma questão de dignidade do preso”, diz.
O promotor criminal admite, também, o maior problema do Presídio Regional como sendo a falta de espaço. “As salas onde ocorriam cursos, acabaram se tornado celas”, pontua. E para mudar esse cenário, conforme Pires, é necessária a construção de novas penitenciárias planejadas para receber os programas e cursos voltados à mão de obra prisional. “Isso, na verdade, são políticas públicas: cabe ao Estado propiciar, mas não vemos, hoje, nenhum projeto na área de segurança pública, nesse sentido”, salienta.

Investimento
O investimento, para o promotor, é a palavra chave que rege a mudança do sistema prisional e da segurança pública, como um todo. “Pode se questionar sobre a crise, mas o que ocorre, muitas vezes, é problema de gestão, de falta de vontade. Um exemplo emblemático que eu cito, é o presídio aqui de Passo Fundo. Existe recurso destinado à infraestrutura necessária há 10 anos já, mas não se faz por questão de interesse político ou por própria incompetência”, conclui.

Semiaberto

No Instituto Penal de Passo Fundo (IPPF), onde estão os presos que cumprem pena em regime semiaberto, estão alojados 258 detentos, hoje. Desses, 107 saem para trabalho externo. Os demais permanecem recolhidos dentro do estabelecimento prisional durante o dia.


Eu quero contratar. Como faço?
* Encaminhamento
Através da 4ª Delegacia Regional da Susepe ou em contato com o próprio Instituto Penal de Passo Fundo.
* Fiscalização
A Vara de Execuções Criminais deve ser informada sobre as saídas dos detentos e o horário em que os mesmos permanecem fora da casa prisional, bem como endereço do local onde foi empregado. Existe a possibilidade de um Oficial da Justiça visitar a empresa, para fiscalizar.

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