A política de desencarceramento promovida pelo Judiciário, sob alegação de que os presídios estão superlotados e não comportam mais a população carcerária, tem recebido fortes críticas do Ministério Público e da polícia, responsável pelas prisões e investigações. A eficácia desta alternativa como forma de desafogar o sistema é questionada, visto que o Judiciário tem liberado condenados com extensa ficha criminal que, invariavelmente, voltam a cometer crimes.
Além disso, há entendimento entre detentos, de que o Judiciário “ tá soltando todo mundo(....) Não tá segurando ninguém: os cara tão puxando bastante cadeia e tão mandando tudo embora.” A conversa transcrita em partes consta de uma gravação de um detento conversando com um comparsa a qual O Nacional teve acesso, mas que não disponibilizará na integra por não ter autorização legal.
Entre os casos de presos liberados e que foram reincidentes está uma prisão do dia 26 de outubro do ano passado, quando dois homens foram capturados em flagrante por tráfico de drogas, após denúncias feitas pela comunidade, já farta com a criminalidade do local.
Ambos tinham passagens na polícia pelo mesmo delito e, inclusive, eram reincidentes (quando já ocorreu alguma condenação). Não precisou mais que algumas horas para que voltassem às ruas com a possibilidade de fazer o que bem entendessem. Inclusive, voltar a vender os ilícitos.
Passados 14 dias, outro fato similar gerou desconforto a população. Dois integrantes de uma facção da região metropolitana foram presos em flagrante em Passo Fundo, com veículos roubados e com sinais identificadores adulterados. Como integrantes do grupo “Bala na Cara”, ambos eram reincidentes e considerados bastante perigosos. No dia seguinte, entretanto, foram soltos.
No final do mesmo mês, também por decisão judicial, o segurança de um traficante, preso por porte ilegal de arma de fogo, obteve liberdade um dia após a prisão. O homem já era conhecido da polícia, por seus antecedentes criminais, e considerado como uma pessoa perigosa para o convívio comum.
O juiz da 2ª Vara Criminal do Fórum de Passo Fundo, que também responde interinamente pela 3ª Vara Criminal e pela Vara de Execuções Criminais, Allan Peixoto de Oliveira, explica que as decisões referentes aos flagrantes são fundamentadas, somente nas informações que chegam até o juiz plantonista sobre o fato em si. “Se o juiz, baseado na lei e na Constituição, entender que aquele preso tem condições de responder o processo em liberdade, se concede a liberdade”, explica.
Já o titular da Delegacia Especializada em Furtos Roubos Entorpecentes e Capturas (Defrec), delegado Diogo Ferreira, entende essas decisões judiciais que concedem liberdade rapidamente aos presos, como um incentivo ou até um convite ao mundo da criminalidade. “A gente prende preventivamente ou em flagrante, pessoas condenadas a mais de 20 anos de prisão, que estão no semiaberto. Ou seja, durante o dia estão livres para cometer outros delitos. Quer incentivo maior?”, questiona.
O promotor criminal, Marcelo Pires, compartilha do mesmo ponto de vista. “Quando se começa a falar sobre violência, nós vemos que foram criados determinados mantras, como o de ‘encarceramento em massa’ ou o do ‘país que mais prende no mundo’, quando estamos passando, na verdade, por um processo contrário: de desencarceramento e de impunidade”, diz.
Em liberdade
Não bastando as deliberações já habituais, que colocam em liberdade os presos em flagrante ou preventivos, mesmo que reincidentes, como visto nos exemplos, em novembro do ano passado ocorreu um mutirão carcerário no município por determinação do Tribunal de Justiça. Na ocasião, o titular da 1° Vara de Execuções Criminais em Porto Alegre, Paulo Augusto Oliveira Irion, esteve em Passo fundo com intuito de analisar a situação de cada detento e progredir a pena ou por em liberdade os que já haviam cumprido o tempo de prisão e que continuavam encarcerados. “São direitos das pessoas aprisionadas, que devem ser rigorosamente cumpridos, pois elas não podem ficar lá – no presídio – com seus direitos vencidos”, argumentou na época.
Mais de 100 apenados dos regimes semiaberto e aberto receberam a vantagem da progressão de pena. Uma parcela recebeu o privilégio de cumprir o que faltava – e ainda falta – do tempo de condenação, em regime domiciliar, ou seja, em casa. Outra parcela foi posta em liberdade.
Entre eles estavam assaltantes, traficantes, autores de homicídios, de furtos, de receptação e homens condenados por estupro de vulnerável. A reportagem teve acesso também à relação dos detentos beneficiados e analisou a situação de 50 deles. Dos cinco casos que serão expostas a seguir, quatro deles são investigados por retornarem ao mundo do crime.
Caso I: 21 anos e seis meses de condenação
O preso recebeu duas condenações em 2015, por posse de arma de fogo e tráfico de drogas, que renderam oito anos e três meses de prisão em regimes aberto e semiaberto. Contra o detento ainda pesava pouco mais de 13 anos de condenações determinadas em 2013. No ano passado, dia 04 de dezembro, foi a domicílio.
Caso II: 19 anos de condenação
O preso recebeu uma condenação de seis anos e quatro meses em 2011, por assalto. Outra de seis anos e oito meses pelo mesmo delito, em 2013. Já em 2017, no mesmo ano em que recebeu o benefício do domicílio, teve a terceira condenação: cinco anos e oito meses, por roubo. Na rua passou pouco menos de dois meses, até ser preso em flagrante, mais uma vez, pelo seu habitual crime de assalto.
Caso III: 25 anos e quatro meses de condenação
Em 2006 a apenada foi condenada a 22 anos e oito meses de reclusão por crime de homicídio. Em 2011 a pena aumentou. Foi para 25 anos e quatro meses. Com previsão final de pena para 2031, isso se não descumprir as regras da casa prisional ou estabelecidas pelo Judiciário, também recebeu a vantagem.
Caso IV: Três anos e seis meses de condenação
No dia 21 de agosto do ano passado, o réu foi condenado a cumprir três anos e seis meses de prisão, em regime inicial semiaberto. Nem quatro meses se passaram para que ele obtivesse a vantagem e saísse da penitenciária.
Caso V: Seis anos e cinco meses
A condenação ocorreu em 2016. O detento, conhecido da polícia, mas ainda sem nenhuma outra condenação, respondia pelo crime de roubo. No dia 04 de dezembro de 2017 obteve o benefício. Deveria cumprir os outros quatro anos e oito meses da pena em regime domiciliar, mas saiu da cidade seis dias depois, a fim de cobrar uma dívida. Naquela data acabou morto, vítima de homicídio.
Entre os casos examinados, ainda havia os detentos que fugiram do presídio ou não se apresentaram na data prevista. Eles descumpriram as regras da penitenciária, motivo que os levou a responder por algum Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD). Via de regra receberiam sanções por sua falta de disciplina, ao invés de benefícios, o que provavelmente não foi levado em consideração durante a tomada de decisão.
Dias após o mutirão, o Ministério Público entrou com recurso junto ao Tribunal de Justiça, solicitando a revogação das solturas que, segundo Pires, foram concedidas sem análise individual dos apenados. Conforme o promotor, a maioria não preenchia os requisitos legais, mas obteve liberdade (prisão domiciliar ou uso de tornozeleira) da mesma forma. “O indivíduo cometeu um crime grave e colocou a sociedade em perigo e não pode cumprir seus cinco ou seis anos no semiaberto? Ou seja, nem punido a dormir no presídio ele é?”, questiona.
Ao contrário do que afirma o promotor, para o juiz Oliveira, todos os detentos estavam aptos. “Não posso te falar nos casos específicos, mas eles estavam aptos aos benefícios externos. Na época eles tinham que dormir na penitenciária, apenas. Então ficavam das 06h às 20h45 na rua, sem monitoramento efetivo. Como essa fiscalização é falha, por falta de estrutura, e os presos já tinham esse direito de estar fora do presídio, eles foram colocados em prisão domiciliar com monitoramento eletrônico às 24h”, esclarece.
A decisão teria encontrado, portanto, uma forma mais palpável de controlar os passos dos detentos. “Inclusive em termos de efetividade da pena, no sentido de evitar a reincidência, é muito mais benéfica”, acrescenta.
Mas o delegado discorda do magistrado e afirma que o mutirão carcerário teve um único objetivo: resolver o problema da superlotação. “Muitos dos que ganharam a liberdade, a meu ver, não eram merecedores. Eles estavam envolvidos em crimes antes de serem presos pela condenação e, já no semiaberto ou em domiciliar, voltaram a ser identificados como autores de outros delitos, senão presos novamente”, enfatiza.
Tráfico de drogas
Já em relação aos condenados por tráfico de drogas, que foram colocados em domicílio – geralmente onde ocorre a venda de entorpecentes –, o juiz informou que a pena não pretende prevenir, mas fazer com que se cumpra pelo que já foi feito. “O fato de ele estar em monitoramento não quer dizer que ele vai ou não cometer esse crime. Se fizer novamente, tem a polícia para reprimir”, completa.
O mito do encarceramento
Com dados obtidos em sites de estatísticas, o promotor revela que a sociedade passa por um processo de desencarceramento criado há mais de 20 anos. “Até 60 mil homicídios são registrados por ano no Brasil. Desses, 90% não são solucionados, porque não tem autoria. Que encarceramento nós temos, então, nos casos de homicídios?”, pergunta.
Mesmo sem levar em consideração os crimes contra a vida que não são esclarecidos, ainda há uma porcentagem significativa de 50,67% nas penas que comportam a transação penal, ou seja, mais da metade da legislação penal permite aplicação de uma alternativa, que não a reclusão.
Dos crimes que restaram para se aplicar prisão, outros 24,10% são passíveis da suspensão condicional do processo, que ocorre quando o sujeito se submete a determinadas condições impostas pelo Ministério Público. Assim, o processo fica suspenso.
Conforme Pires, de todas as penas previstas no Código Penal, 74,77% não se aplicam penas privativas de liberdade. “É óbvio que nós temos uma grande população carcerária, mas os que estão presos é porque não têm mais condições de ficarem soltos, pois já recorreram a todos os meios legais. Porque são marginais com periculosidade e precisam ser encarcerados”, afirma.
Medidas legislativas
De acordo com Oliveira há alguns anos foram criadas medidas cautelares que visam o desencarceramento. “Se a pessoa comete um crime em determinado local, por exemplo, e para cometer o delito ele precisar frequentar aquele mesmo local, ao invés de prendê-lo é possível proibir. Se for a medida for suficiente, então não se prende. O juiz determina, mas só aplica a lei”, esclarece.
Interditado
Algumas prisões domiciliares ou liberdades obtidas ocorreram porque o albergue do Presídio Regional de Passo Fundo foi interditado naquela época. A interdição teria se baseado na Súmula 56 e no Recurso Extraordinário 641.320 do STF, que criam alguns parâmetros para a concessão das domiciliares.
O muro do presídio, por exemplo, seria inadequado aos presos do regime aberto, motivo pelo qual foram mandados para casa. “Então nós temos a interpretação de alguns juízes, que é o caso aqui de Passo Fundo, onde o Instituto Penal foi interditado porque o juiz entendeu que não era adequado ao cumprimento da pena, devido a um muro. Não referiu, entretanto, nenhuma condição sub-humana ou que ferisse direitos humanos”, salienta.
Para o juiz, entretanto, a interdição não interferiu na determinação das prisões domiciliares, pois elas foram concedidas aos já beneficiados pela legislação de execução penal. “Inclusive os que que saíam e voltavam diariamente, acabavam por ser obrigados a levar comida e droga aos presos. Durante o repouso noturno estavam todos juntos”, esclarece.
Ainda, segundo Oliveira, o privilégio das tornozeleiras e das prisões domiciliares aposta no resgate do ser humano que existe dentro do preso. “É a única chance que a sociedade tem de combater a criminalidade”, menciona e acrescenta que a lei é ineficaz no que se refere ao sistema prisional: “Não deveria existir o semiaberto, pois é ele que retroalimenta, que faz a ponte entre o preso que está dentro do estabelecimento com a sociedade. Não deveria existir”, completa.
Há cinco meses o albergue está interditado e os presos que obtiveram os benefícios e não retornaram ao presídio através de outras prisões, continuam soltos. O Tribunal do Júri analisa o recurso do Ministério Público, mas a decisão deve demorar até um ano para sair. Até lá, boa parte deles vão ter cumprido o tempo que faltaria para chegarem, efetivamente, a liberdade.