O irmão mais velho do adolescente de 12 anos baleado no sábado (9) ainda se lembra do estopim que ouviu e do “clarão” que antecedeu à trágica imagem do irmão no chão de um dos quartos da pequena casa em que vivem em sete pessoas na Vila São Miguel. “Ele me pediu ajuda duas vezes”, conta, “daí começou a se afogar com o sangue.”
Minutos antes, deixava uma sacola de pães sob a mesa e via o irmão e mais dois amigos entrarem no quarto. “Rindo. Conversando. Bem”. De lá, o adolescente só sairia para ir ao Hospital São Vicente de Paulo (HSPV) de Passo Fundo, onde permanece sob acompanhamento médico. O disparo, segundo o Boletim de Ocorrência (BO) registrado no mesmo dia, entrou pela boca – indo de cima para baixo – alojando-se na coluna cervical do guri.
O padrasto, de 47 anos, não estava no momento do disparo. Cinco minutos antes, conta, foi para a casa de sua mãe. Era aniversário dele e fora receber os parabéns da matriarca, mas, tão logo chegou, teve que voltar. “Me disseram que ele estava baleado. Ainda falei: só se for de feijão!”, reverberou, incrédulo sobre o que aconteceu.
Dentro da casa, ele mostrou as marcas que ainda custam a sair do chão de madeira e uma bala de arma de fogo encontrada dentro de um tênis. “Vamos levar à polícia. Deve ser da mesma arma”, pondera. “Mas fico pensando que se eu estivesse em casa isso não teria acontecido. Nunca tivemos arma aqui.” De acordo com o Boletim de Ocorrência, a arma seria do irmão do amigo da vítima, que pediu que ela fosse guardada na casa do adolescente. No local, a Brigada Militar encontrou dois cartuchos calibre 32, um deles percutido, mas nenhum deflagrado.
Flexibilização perigosa
O caso, junto com o ataque à escola da cidade de Suzano/SP que deixou oito pessoas mortas, reacende o debate sobre a posse e o porte de armas de fogo. Professor da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Porto Alegre e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rodrigo Azevedo aponta que, embora o caso envolvendo a escola de Suzano envolva uma série de elementos específicos à tragédia, “é preciso destacar que situações como essa vêm se repetindo e ocorrem em um momento em que o discurso de ódio tem legitimado a violência”.
De acordo com o professor, o marco para casos como o de Suzano no Brasil foi o massacre na escola de Realengo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, em 2011. Outro caso aconteceu em novembro do ano passado, quando um homem invadiu um culto de uma igreja em Campinas e matou quatro pessoas. Após ele e com a eleição de Jair Bolsonaro (PSL), que tinha como uma das bandeiras “armar a população”, foi assinado um decreto que flexibilizou a posse delas, em janeiro desse ano.
Por ser recente, Azevedo diz que ainda é impossível fazer uma análise do impacto da promulgação do decreto com o aumento ou diminuição da violência, mas critica o discurso adotado pelo governo e outros setores da sociedade, diante de tragédias como essa. “Não há uma justificativa racional para uma liberação do acesso a armas. Porque todas as pesquisas sérias apontam que ter uma arma de fogo não garante a segurança do indivíduo. Na verdade aumentam as chances de que ele seja um alvo letal, que aumentem os crimes de violência doméstica, os riscos de acidentes domésticos com crianças, além de que garantirá que armamento de forma lícita fique na mão de criminosos”, avalia.
Azevedo exemplifica citando os 117 fuzis encontrados na casa do amigo do suspeito de matar a vereadora do Psol Marielle Franco. “Esse caso denota o que há por de trás desse discurso do armamento. A defesa de uma liberação das amas atende interesses de grupos privados. Pois caso haja flexibilização das leis esses grupos [milícias] estarão dentro da lei”, critica.
A preocupação do especialista se debruça nos próximos passos do governo em relação a esse tema. Sobretudo porque o decreto não trouxe grandes mudanças em relação ao armamento. “Porém isso acaba sinalizando para os mecanismos de controle que há uma despreocupação do poder público sobre o armamento”, aponta. “O que não traz a garantia de que a posse impedirá o porte”.
Dados
Em Passo Fundo, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Rio Grande do Sul aponta que de 2016 a 2018 foram registrados 162 casos de porte ilegal de arma de fogo de uso restrito; 86 casos de posse irregular de arma de fogo de uso permitido; e 71 casos de posse ou porte de arma de fogo de uso restrito.