Apenas 1,78% dos detentos da 4ª região Penitenciária de Passo Fundo participaram, ontem (10), do primeiro dia de provas do Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL). A prova, que pode garantir certificado de conclusão do Ensino Médio e garantir ingresso no ensino superior, também foi aplicada no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) de Passo Fundo para apenas 19,2% dos internos e continua hoje, com testes sobre ciências da natureza e matemática. A baixa adesão, porém, revela outro dado que traça o perfil das cadeias: a maioria dos detentos não possui nem o ensino fundamental completo.
Em números absolutos, inscreveram-se para a prova 65 detentos do total de 3.648 das 13 casas prisionais da região. Foram 22 do Presídio Estadual de Lagoa Vermelha, 11 do Presídio Regional de Passo Fundo (PRPF), 21 do Presídio Estadual de Sarandi, 7 do Presídio Estadual de Soledade e 4 do Presídio Regional de Iraí. Já no Case, foram 15 internos para a população de 78.
A Superintendência de Assuntos Penitenciários (Susepe) de Passo Fundo e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) não disponibilizaram a série histórica para comparar o avanço ou o declínio dos detentos inscritos na prova.
Baixa escolaridade
Os números, no entanto, revelam a ínfima quantidade de detentos aptos para fazer a prova. Segundo a coordenadora técnica da 4ª Delegacia Penitenciaria, Priscila Corazza Simões, um dado que reflete o perfil do apenado. “Esse número é pequeno, mas retrata a realidade do sistema prisional. A maior parte não tem Ensino Fundamental completo. E é isso o que esse número apresenta. As provas do Encceja, por exemplo, tiveram maior adesão. Mas porque há maior necessidade também”, explicou.
O Encceja, ou Exame Nacional para Certificação de Competência de Jovens e Adultos, é uma prova aplicada com o objetivo de fornecer o diploma de Ensino Fundamental e Ensino Médio para pessoas que estão acima da idade regular de certificação desses níveis da Educação Básica.
Dados da Susepe, de janeiro deste ano, apontam que este é o perfil da maioria dos detentos gaúchos. Segundo os índices, tanto a população carcerária masculina quanto a feminina não possui o ensino fundamental completo (sendo 53,5% das apenadas e 61,4% dos apenados de janeiro). Em contrapartida, homens com superior completo no início do ano eram 0,9% e com o ensino superior incompleto, 0,4%. Nas mulheres, o recorte para superior completo era de 1,5% e de superior incompleto, 3%.
Escolaridade X Crime
Especialista em Direito Penal e Processual Penal, o advogado e professor da Universidade de Passo Fundo (UPF), Rodrigo Graeff, aponta para a tênue relação entre crime e escolaridade. Segundo ele, existe um parâmetro não apenas gaúcho, mas nacional e mundial que revela esse problema. “Mas é muito importante salientar que isso não significa que pessoas com menor escolaridade comentam mais crimes”, destaca. “Mas significa que pessoas com menor escolaridade tendem a ser mais vulneráveis a atuação do sistema criminal, são mais suscetíveis a serem investigadas, detidas em flagrante, processadas, julgadas e condenadas. Alem disso é muito importante que se tenha em vista que quanto maior o acesso à escolaridade e quanto maior o nível de escolaridade da população, maiores são as chances de acesso ao mercado de trabalho, à ascensão econômica e de se obter aumento na qualidade de vida. O que, consequentemente, contribui para a diminuição dos índices de criminalidade.”
Graeff lembra com isso a própria Lei de Execuções Penais (LEP) que, já no artigo primeiro, explica que ela serve “para garantir uma adequada reintegração social do apenado”, se mostrando falha diante das altas taxas de reincidência e da superlotação carcerária.
Para ele, é necessário um papel mais atuante do estado para minimizar o problema já na base e, quando identificado, levando ao cárcere, que ali a lei não se faça letra morta e garanta a real ressocialização. “A pena privativa de liberdade foi feita para isso”, destaca Graeff. “Logo é necessário que se discutam mais sobre políticas públicas de inclusão, de acesso à educação, de aceso ao trabalho, pois esses são meios comprovadamente eficientes de redução da criminalidade.”
Possibilidade de acesso
Karin Lilian Schappo, analista em Educação do Case de Passo Fundo, lembra-se do impacto da educação na história de um dos internos. Há dois anos, interno na unidade, ele realizou a prova do Enem e conquistou o certificado de conclusão do Ensino Médio. Mesmo dentro do Case foi incentivado a buscar o Ensino Superior, sendo aprovado no Instituto Federal Sul-Rio-Grandense e matriculando-se ao deixar o local.
“O Enem PPL é uma conquista de fundamental importância para a socioeducação. É um direito garantido por lei que é plenamente efetivado por nós, que fazemos a Fundação. O objetivo é que o socioeducando possa voltar à liberdade com mais oportunidades e que não volte a cometer atos infracionais. O interesse dos internos pelo Enem PPL é expressivo e estimulante, inclusive alguns deles estão fazendo a prova por experiência. É um indicativo de mudança de rumo e uma grande esperança, pois sabemos o poder transformador da educação”, defende Karin.
Priscila reforça esse pensamento, uma vez que vê na permanência do Neeja dentro do PRPF Neeja – que em novembro tinha 120 alunos – uma possibilidade real de ressocialização. “Eu percebo que o espaço de prisão acaba criando um processo de modificação no sujeito, o fazendo perder papeis estruturantes. Seja de pai, mãe, filho ou profissional. Então uma vez garantida a oportunidade da pessoa estudar enquanto cumpre pena, fica também garantido que alguns papeis não vão se perder. Assim ele poderá ser capacitado para a vida.”
Enem PPL
O Enem PPL é aplicado desde 2010 pelo Inep, em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Neste ano 1.228 penitenciárias foram homologadas para realizar a prova, em 26 unidades da Federação (exceto Sergipe), com 46.163 candidatos inscritos – 12,47% a mais que 2018.
As provas possuem o mesmo nível de dificuldade do Enem regular. A única diferença é a aplicação, que acontece dentro de unidades prisionais e socioeducativas indicadas pelos respectivos órgãos de administração prisional e socioeducativa, de cada unidade da Federação.
Ontem (10) foram aplicadas as provas de linguagens, códigos e suas tecnologias, redação e ciências humanas e suas tecnologias, com cinco horas e meia de duração. Hoje, serão aplicadas as provas de ciências da natureza e matemática, em cinco horas.
O teste avalia o desempenho do participante que concluiu o ensino médio e, a partir de critérios utilizados pelo Ministério da Educação (MEC), permite o acesso ao ensino superior por meio de programas como Sisu, Prouni e Fies. Além disso, contribui para elevar a escolaridade da população prisional brasileira.