O Brasil tem vivenciado uma sucessão de episódios na política que prometem dar muito trabalho a quem vai contar essa história, especialmente do ponto de vista da interpretação que será dada. Qualquer que seja, dará margem à questionamentos. Ela será técnica ou política? A divergência já começa com o processo de impeachment de Dilma Rousseff:foi golpe ou não? E a decisão da Câmara dos Deputados em barrar a denuncia por corrupção passiva contra Michel Temer, foi a melhor alternativa em nome da estabilidade nacional? O Nacional conversou com dois historiadores de Passo Fundo conhecidos por suas divergências de opiniões em relação a este cenário conturbado que vem desde a campanha de 2014. A conversa teve como ponto de partida o resultado da votação da Câmara que arquivou a possibilidade de o atual presidente ser investigado pelo Supremo Tribunal Federal.
- Foi golpe?
A discussão é frequente. Para o historiador José Ernani de Almeida, foi golpe. Já para o professor de história e teoria política, Antônio Amantino, não foi – pelo contrário, todo o trâmite foi correspondente ao que defende a Constituição. Por outro lado, Ernani vê que no futuro este movimento será claramente visto como um ato político golpista.
“O próprio Temer confessou em uma entrevista que o afastamento foi uma vingança de Eduardo Cunha [ex-presidente da Câmara, hoje preso] por Dilma ter permitido a continuidade das investigações contra ele na Comissão de Ética da Câmara. Ele simplesmente desarquivou um processo que não tinha nenhuma legalidade para tirar a presidente”, defende ele.
Por outro lado, Amantino vê o impeachment como ato constitucional e plenamente ancorado na lei. “Não houve golpe. Teve cumprimento da lei. Temer tem legitimidade, sim. Ele era o vice-presidente. A constituição define que, sendo impedido o presidente, quem assume é o vice”, apontou.
- A intervenção do Executivo no Legislativo
A votação da última quarta-feira (2) é consequência do golpe, enfatiza Ernani. Para ele, foi este movimento o responsável por desestabilizar as instituições do país. “Não poderíamos esperar outra coisa. O país passa por uma das crises mais duras da história. O poder Executivo mostrou sua força para ficar no poder. Apelou para a lei da oferta e procura”, disse ele, que se refere aos R$ 134 milhões liberados por Temer em julho para emendas parlamentares.
- Erros e acertos
“Vejo com muita preocupação a continuidade do nosso processo democrático que foi conseguido a duras penas após o período da ditadura militar”, segue Ernani. Para ele, 2016 foi um ano que serviu para desestabilizar completamente as instituições brasileiras. Isso colabora, também, para aumentar a descrença no político brasileiro.
Este fator, no entanto, não estaria tão acentuado se o Brasil possuísse outro sistema de governo. A questão é defendida pelo professor Amantino. “Tudo isso vai se explicar como uma das grandes crises do regime político brasileiro. É uma crise resumida no mau funcionamento do sistema, um gigantismo do estado fora do comum. Se o Brasil não possuísse tantas estatais, não haveria tanta corrupção. Se a Petrobrás fosse privada, esta corrupção e desvio de recursos extraordinários não teria acontecido. É a organização do estado brasileiro que é problemática”, sintetizou.
Desta forma acaba se dando muita ênfase para a Lava Jato. “Muitos estão falando que a história contemporânea do Brasil se divide entre antes e depois da [Operação] Lava Jato. A operação trouxe à tona um dos maios significativos processos de corrupção do mundo. [A corrupção] Sempre existiu, mas é intensificada nos países onde existem muitas estatais”, pontuou Amantino. Com a aparição deste movimento, aumenta também a descrença do brasileiro no sistema político. Isso, para Ernani, significar estar no fundo do poço.
“Quando não acreditamos mais na política, os caminhos se tornam perigosos. Começam a aparecer figuras oportunistas, que dizem não pertencer ao meio político – como o atual prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB) – ou esdrúxulas, como Jair Bolsonaro (PSC)”, relaciona. Para Ernani, toda vez que uma nação passa por crises, é comum surgirem “salvadores da pátria” dispostos a salvar o contexto e aclamados pela massa popular. “A comparação pode até ser exagerada, mas foi isso que aconteceu na década de 1930 na Alemanha e na Itália. Vieram ditadores, com visões totalitárias”, terminou.
- Próximos passos
Aí está outro ponto de visões opostas. Enquanto Ernani é pessimista, Amantino se diz otimista ao rumo que o Brasil pode vir a tomar. “Temer é impopular, mas não existe movimentação popular para derrubá-lo. Por isso o Congresso votou em favor dele. Eles entenderam que as provas não eram suficientes para isso. Em cima das eleições de 2018, isso só traria mais problemas ao Brasil”, declarou. Além disso, mesmo com toda crise, a economia brasileira parece dar os primeiros sinais de avanço.
“A inflação está baixa e o mercado acionista pré-aquecido. Sou otimista, sim. Vejo que o Brasil entra, em seis ou oito anos, em um processo de crescimento econômico. Agora é só esperar que a população brasileira tenha sabedoria para escolher um bom governo”, pontuou. O professor, no entanto, não possui nenhum nome em mente até o momento. Só vê que devem surgir políticos de “fora do sistema”, “não-carimbadas” – um processo semelhante ao que levou Fernando Collor à presidência em 1990. Dois anos depois, o hoje senador foi impedido de seguir no poder por denúncias de corrupção. “Se fala em Bolsonaro, em Dória e até no apresentador Luciano Hulk. O brasileiro tende a votar em alguém externo à política central, propriamente dita. Isso também pode nos colocar em uma aventura. Apesar de tudo, meu otimismo é realista”.
Por outro lado, otimismo não faz parte da análise do historiador José Ernani. “Não vejo alternativas para 2018. O que vejo é que está se fazendo de tudo para evitar que Lula concorra. E sabemos que é porque, apesar dos pesares, é porque ele possui um capital político inquestionável”, pontua.