Uma proposta polêmica voltará a mexer com os ânimos de servidores públicos no Senado em 2018: o projeto de lei que, na prática, acaba com a estabilidade no serviço público para quem for avaliado com baixo desempenho em suas atividades. Embora tenha sido aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado em outubro, o texto ainda é questionado por juristas. Afinal, um parlamentar pode propor mudanças na estabilidade dos servidores e definir critérios para a avaliação de desempenho em todo o país?
Para o senador Lasier Martins (PSD-RS), relator da proposta na CCJ, a resposta é uma só: “Nós debatemos com profundamente com a área legislativa e constatamos que não há nenhuma inconstitucionalidade”. Mas não é assim que avaliam três representantes do escritório Cezar Britto Advogados Associados. Em artigo escrito para o Congresso em Foco (íntegra abaixo), os advogados argumentam que há um “vício de iniciativa”: o Congresso extrapola suas competências ao tratar dos dois assuntos que, segundo eles, só podem ser regulados por iniciativa do Executivo.
Ainda assim, no entendimento de Rodrigo Camargo e Diogo Póvoa e por Jandson Gandra, os servidores federais só podem ser atingidos por mudanças propostas pelo presidente da República. Já os estaduais, pelo respectivo governador; e os municipais, pelo prefeito. De acordo com os advogados, esse entendimento é pacífico no Supremo Tribunal Federal (STF).
“Dispor sobre a estabilidade dos servidores públicos da União e dos Territórios está dentro das iniciativas privativas do presidente da República. Não só isso, utilizando o princípio da simetria das Constituições Estaduais, atesta-se que compete privativamente ao Chefe do Executivo Estadual dispor sobre os mesmos temas, inclusive, sobre a estabilidade dos servidores públicos a ele vinculados”, consideram.
Tanto Lasier quanto a senadora Maria do Carmo (DEM-SE), autora do projeto, alegam que é necessário estabelecer uma mesma avaliação periódica de desempenho para todos os servidores públicos, sejam eles federais, estaduais ou municipais, independentemente da previsão de cada ente federal. A justificativa deles é de que a regulação por cada ente federado levaria a regimes bastante diferenciados de aferição do desempenho funcional, com reflexos sobre a extensão da estabilidade.
Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 116/2017, de autoria da senadora Maria do Carmo Alves (DEM-SE), que trata da regulamentação do art. 41, § 1º, III, da Constituição Federal, e dispõe sobre a perda do cargo público por insuficiência de desempenho do servidor público estável. O projeto foi aprovado em outubro na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) com substitutivo do senador Lasier Martins (PSD-RN) e agora está em análise na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) daquela Casa Legislativa.
Antes de mais nada, é necessário apresentar ao leitor o que é o chamado “instituto da estabilidade”: CF, Art. 41 – São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. A estabilidade é, portanto, um direito constitucional do servidor de permanecer no serviço público, protegido de demissões arbitrárias e ilegais. Para que o servidor possa obter este benefício, deve ter prestado concurso público para cargo efetivo e, ainda, ser nomeado em cargo previsto em lei específica da categoria, além de cumprir o estágio probatório.
Se fizermos um levantamento histórico, perceberemos que a partir da Revolução Francesa, o Estado ganhou novos vetores. Como forma de negação ao regime anterior, houve uma clara necessidade de se limitar e regulamentar melhor o Poder e sua forma de exercício. O garantismo e a proteção aos direitos do cidadão passaram a ser a maior forma de limite à arbitrariedade e, por conseguinte, a base justificadora da existência do Estado. Os horrores trazidos pelas duas grandes Guerras Mundiais, no século XX, notadamente aqueles conduzidos pelos regimes nazifascistas, densificaram ainda mais as garantias e os direitos do cidadão. Isso tudo traz alguns efeitos, dentre eles o de que os Estados devem primar, tanto quanto possível for, por uma atuação objetiva e ilesa.
No Brasil, viu-se a necessidade de criar um mecanismo capaz de estabilizar o serviço e o servidor público, diante dos problemas advindos da alternância partidária no comando do Estado que, após o pleito eleitoral, efetuava mudanças no quadro de pessoal, promovendo a exclusão dos oposicionistas, gerando grandes prejuízos à prestação dos serviços e, principalmente, seu prosseguimento e contiguidade. A criação do instituto da estabilidade do servidor público, portanto, tem base no princípio da continuidade, também chamado de princípio da permanência, que consiste na proibição da interrupção total do desempenho de atividades do serviço público prestadas à população.
E é bom lembrar que, com a criação do instituto da estabilidade, encerraram-se as demissões em massa de agentes públicos, garantindo a continuidade dos serviços primordiais à sociedade e proporcionando certa independência à Administração Pública nas funções exercidas. Porém, é necessário lembrar também que já está previsto na lei, no mesmo parágrafo 1º e nos incisos do art. 41 da Constituição Federal, que o servidor público estável só perderá o cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado, mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa ou mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma da lei complementar, assegurada a ampla defesa.
O processo administrativo disciplinar é o meio adequado que a Administração Pública dispõe para apurar eventuais infrações disciplinares cometidas por servidores públicos e, consequentemente, aplicar as sanções disciplinares cabíveis. A Administração Pública, por meio do processo administrativo disciplinar e mediante regras devidamente previstas em lei, como a Lei 8.112/1990, pode e deve controlar as atividades dos seus servidores públicos, principalmente no que se refere ao cumprimento de suas obrigações funcionais, bem como deverá detectar o eventual desrespeito de proibições administrativas e penais tipificadas.
Importante acrescentar que o processo administrativo disciplinar tem por meta tão somente a apuração do ilícito administrativo, visto que, após encerrados os trabalhos e proferida a decisão, esta somente apresenta repercussão na esfera administrativa. Assim, o processo administrativo disciplinar é o mecanismo utilizado para, atendidos os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, solucionar conflitos de interesses, destinado a apurar responsabilidades de servidores por infração praticada no exercício de suas atribuições ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontra investido. Inclusive, sendo possível a perda da sua estabilidade e por consequência, sua demissão.
Pelo processo administrativo disciplinar, define-se que a demissão é a penalidade mais gravosa para o servidor público que está em pleno exercício de suas atividades funcionais. A demissão é imposta àquele que praticou uma falta gravíssima, cuja ação ou omissão causou prejuízo tão elevado ao órgão público que, após devidamente apuradas e configuradas a autoria e a materialidade infracional, determinaram o desligamento do servidor do quadro do funcionalismo público. Dessa forma, atualmente, conforme as previsões legais, já se faz presente a possibilidade de demissão do servidor público, não sendo a sua estabilidade um instituto intocável ou desprovido de questionamentos.
Tratando agora mais especificamente do art. 61, § 1º, II, c, da CF, que prevê a iniciativa privativa do chefe do Executivo na elaboração de leis que disponham sobre servidores públicos, regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria, vimos uma interpretação equivocada do relator do projeto na CCJ, senador Lasier Martins, uma vez que este afirma em seu substitutivo que a reserva de iniciativa conferida ao Presidente da República alcança somente o regime jurídico específico dos servidores públicos federais. Ora, por uma leitura simples ao dispositivo constitucional, interpreta-se que a iniciativa privativa do Presidente da República não se restringe ao regime jurídico, que é um gênero, mas se estende claramente ao provimento de cargos, à estabilidade, e à aposentadoria. Ou seja, dispor sobre a estabilidade dos servidores públicos da União e dos Territórios está dentro das iniciativas privativas do Presidente da República. Não só isso, utilizando o princípio da simetria das Constituições Estaduais, atesta-se que compete privativamente ao Chefe do Executivo Estadual dispor sobre os mesmos temas, inclusive, sobre a estabilidade dos servidores públicos a ele vinculados.
Assim, a competência para dispor sobre a estabilidade dos servidores públicos da União é do Presidente da República. Dos Estados e dos Municípios, por simetria, é do Chefe do respectivo ente. Quer dizer que, ao contrário do alegado no substitutivo do senador, o Chefe do Executivo não disporá sobre lei que regulará a situação dos servidores públicos de entes diversos, sendo de cada Chefe a iniciativa para a regulação por meio de lei própria.
Nesse sentido, possui vício de iniciativa o PLS 116, uma vez que não foi de iniciativa do Presidente da República no caso dos servidores federais e não foi de iniciativa dos demais Chefes dos Executivos para os demais entes federados. Além disto, ainda busca-se editar uma lei complementar com a pretensão de regular o procedimento de avaliação periódica de desempenho de todos os servidores públicos, sejam eles federais, estaduais ou municipais, independentemente da previsão de cada ente federal. A justificativa é de que a regulação por cada ente federado levaria a regimes bastante diferenciados de aferição do desempenho funcional, com reflexos sobre a extensão da estabilidade.
A Corte Suprema detém, de modo pacífico, inúmeros precedentes julgando inconstitucional, em Plenário, Lei Complementar de iniciativa parlamentar que dispõe acerca da jornada de trabalho, carga horária, provimento de cargos, aposentadoria e a própria estabilidade de servidores públicos, seja de qual âmbito pertencer. Senão, vejamos: ADI 1.895, Rel. Min. Sepúlveda Pertence – ADI 3.175, Rel. Min. Gilmar Mendes – ADI 700, Rel. Min. Maurício Corrêa – ADI 2.904, Rel. Min. Menezes Direito – ADI nº 1.701/SC – Medida Cautelar – Rel. Min. Carlos Velloso – ADInº 1.249-5/AM – Rel. Min. Maurício Corrêa – ADI nº 766/RS – Rel. Min. Celso de Mello.
Por quaisquer métodos interpretativos constitucionais, não há de se conceber a cisão entre provimento, regime jurídico e demissão (hipótese legal de vacância do cargo). A própria ideia de processo administrativo disciplinar, a partir do “procedimento” trazido no PLS 116/17, traz a concepção de direito do servidor. Por óbvio, ter um processo disciplinar ético com lisura e imparcialidade é um direito imputado ao servidor. Assim, traz em sua gênese a natureza de regime jurídico do servidor, apto a atrair a iniciativa do Presidente da República a fim de legislar na matéria.
Não há qualquer razoabilidade e ordem jurídico-constitucional em atribuir ao Chefe do Executivo a iniciativa de legislar acerca de provimento de cargos e regime jurídico do servidor e, por outro lado, conceder a outro Poder (Legislativo no presente caso) a iniciativa de legislar sobre hipótese de “perder” tal cargo, ou seja, sua vacância e disponibilidade de novas investiduras.
Além de tudo o que já foi rebatido, aponta-se, ao final, que o substitutivo apresentado na CCJ determine o art. 247 da Constituição Federal como dispositivo capaz de reafirmar a possibilidade de se estabelecer critérios e garantias especiais para a perda do cargo do servidor estável. No entanto, não se atenta ao seu parágrafo único que afirma que: “na hipótese de insuficiência de desempenho, a perda do cargo somente ocorrerá mediante processo administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa”. Isto é, ainda que seja feita uma avaliação de desempenho, esse juízo deve ser imediatamente seguido de um processo administrativo disciplinar que, só então, será capaz de afetar a estabilidade do servidor público e causar a eventual perda do cargo.
Por isso, não se trata somente de um rito mais simplificado para o processo administrativo, mas, sim, de um procedimento necessário e que antecede aquele que prevê a instauração do processo administrativo para a perda do cargo do servidor público que foi avaliado com insuficiência de desempenho. E mais: não se trata de uma análise aplicável somente aos servidores públicos que desenvolvam atividades exclusivas de Estado, como pretende afirmar o relator do parecer na CCJ. Trata-se da leitura e da intepretação aglutinativa de toda a Constituição Federal que não apresenta expressões vazias, uma vez que usou o termo procedimento de avaliação periódica de desempenho, quando poderia ter deixado expresso que se pretende regulamentar um processo específico e suficiente para a perda do cargo.
Desta forma, a propositura, ao se imiscuir em matéria de competência privativa do Poder Executivo, violou o princípio da harmonia e independência entre os Poderes, contemplado na Constituição Federal (art. 2º), bem como no art. 61, § 1º, inciso II, alínea c, também da Carta Maior que regula o processo legislativo em nosso ordenamento.