De um lado, mais de 300 índios vivem, há mais de uma semana, em um alojamento improvisado em um ginásio de esportes. Do outro, as ruas de acesso à reserva do Ligeiro, estão bloqueadas por troncos e galhos de árvores. O cenário resume o clima de tensão que se apoderou da pequena Charrua, município de pouco mais de três mil habitantes, no norte do Estado.
Um desentendimento entre lideranças provocou a fragmentação da comunidade que era integrada por mais de 1,5 mil indígenas. A divisão está entre o cacique Florindo Lima, alojando no ginásio, e o vice-cacique, Valdir Palhano, que permanece na reserva. O estopim do conflito foi em agosto, quando mais de 50 residências foram queimadas na aldeia. Carros e animais também foram incinerados. Na ocasião, houve troca de tiros e algumas pessoas ficaram feridas.
Após o confronto, os índios, que não concordam com a atual liderança, saíram da aldeia. Sem moradia, eles ficaram abrigados em uma casa da Fundação Nacional do Índio (Funai) de Tapejara. Como o local era apertado e não comportava a demanda, na última sexta-feira (1º), uma liminar, expedida pela juíza Lilian Raquel Bozza Pianezolla, determinou que eles fossem realocados em Charrua.
A volta do grupo trouxe consigo o clima de tensão para o município, conforme a Prefeitura de Charrua. Temendo pela segurança dos moradores, o Executivo suspendeu, na manhã de segunda-feira (4), as aulas das três escolas. O titular da pasta de Educação, Leocir Mezadri, afirma que as escolas Osvaldo Cruz, Carmelina Baseggio e Dentinho de Leite ficam em regiões em que há circulação dos grupos rivais e que poderia haver conflito.
“Como o único local que a gente tem para abrigar eles é no ginásio poliesportivo, tivemos que suspender as aulas porque não há como saber quem é de qual grupo. Pode haver conflito próximo das escolas. Assim, quem é de um grupo está dentro da escola e o outro grupo está fora”, esclareceu Mezadri.
Sem educação e saúde
A escola que fica dentro da reserva está fechada há um mês, assim como o posto de saúde. Sem esses dois serviços essenciais, os indígenas que precisam de assistência regular sofrem com o conflito.
Itelvina Pedro nasceu e se criou na reserva do Ligeiro. Nativa, ela arranha o português, mas se comunica mesmo na língua kaingang com seus pares. Hoje, aos 76 anos, possui dificuldades para caminhar e precisa tomar um fortificante para os ossos. Remédio que conseguia na Unidade Básica de Saúde (UBS). Integrando o grupo que está no ginásio, a idosa depende da ajuda dos demais para receber remédios que acalmam suas dores. “Minha filha teve que ir no posto aqui de Charrua conseguir remédio para minha dor de cabeça, e ainda estou sentindo”, conta.
Além do incômodo físico, a dor que experimenta há semanas, e que não possui remédio, é a de perder a casa no conflito. A residência, de tábuas e amiantot, de Itelvina já não existe mais. “Foi queimado fogão, geladeira, colchão, panela. Até minhas cobertas queimaram. O que eu tinha se foi tudo”, lamenta. A indígena diz sentir saudade de casa. Também sente pelo ‘nenê’, o irmão mais novo dela, que ficou na reserva. Assim como a família Pedro, diversas acabaram se separando em virtude do conflito.
Junto da idosa, outros 300 índios dividem espaço e organizam os colchões, cobertas e roupas como podem. A arquibancada do ginásio virou varal de roupas para aqueles que conseguiram salvar outros bens além da roupa do corpo. A copa virou cozinha compartilhada. Longe de casa, sem ter como trabalhar, o alimento também é fracionado. “A gente se ajuda como pode. A prioridade é alimentar as crianças”, comenta Odair Lima, um dos índios que comanda o grupo. Ele informa que já chegou a faltar comida no local.
Origem do conflito
O estopim desse confronto não fica claro, segundo o Ministério Público Federal (MPF) de Erechim, que cuida do caso. A disputa por poder se arrasta há anos e determinar a origem do conflito é delicado.
O grupo, sob tutela do cacique Valdir Lima, se diz cansado da liderança dos Palhano (vice-cacique) que estão no poder e usufruem de muitos benefícios. Odair Lima informa que foi um acumulo de situações que levou a explosão do conflito, em agosto. “Eles nem índio são, são caboclos. Se casaram com índios e agora estão dominando tudo. Eles falam o português e não o nosso idioma”, reclama.
Os indígenas denunciam que o grupo que está na liderança utiliza o carro da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) para tratar de assuntos particulares. Ainda reclamam que a liderança coloca pessoas não qualificadas em cargos da saúde e da educação enquanto há pessoas com formação técnica que poderiam utilizar a vaga e que eram intimidados com fuzis e espingardas.
A liderança, que está na reserva, informa que o início do conflito foi em virtude de um trator. Evandro Palhano, filho do vice-cacique, é o porta-voz do grupo. Ele conta que a máquina agrícola é fruto de uma doação da Funai à reserva. Para eles, o conflito começou em uma noite em que o filho do cacique, Teixeirinha Lima, estava nervoso e alterado. “Eles estavam afirmando que o trator foi para desviar dinheiro, que estávamos tirando vantagem. Mas tudo isso é mentira. Foi um pretexto que eles usaram para tentar tirar nós daqui”, defende-se. A partir desse acirramento nos ânimos é que se desenrolou o conflito.
Palhano informa que no início do conflito, o cacique havia se posicionado contra o filho, mas que no desenrolar dos fatos, mudou de lado e refugiou-se no ginásio. Nesse mês de desentendimento, Evandro e os demais líderes apontam que o grupo rival já entrou atirando diversas vezes na reserva.
Casas queimadas
As casas queimadas são alvo de investigação. Os índios do ginásio dizem que o grupo rival incinerou as casas e os expulsou da reserva. “Eles começaram a queimar nossas casas em uma tarde. Queimaram algumas. As mulheres e os adolescentes iam mandando a gente sair de casa e tacando gasolina nas nossas coisas. De noite eles queimaram mais”, descreve Odair Lima.
A liderança defende outra versão. Palhano diz que quem começou o conflito foi o outro grupo e que eles teriam queimado as próprias casas e as residências de outras pessoas da comunidade para acusar o grupo. “Depois que eles queimaram nossas casas, o pessoal quis revidar”, confessa.
Sem solução
De um lado, os índios que estão no ginásio reivindicam que as autoridades responsáveis tomem providência sobre a situação. Eles alegam que a Funai não está prestando assistência para mediar o conflito. Do outro, a liderança da reserva diz que aceita um acordo e que busca resolver isso de maneira pacífica. Em meio a isso, o secretário de Educação teme que Charrua esteja sem proteção policial e que, até o momento, os órgãos responsáveis não tenham tomado nenhuma medida para amenizar o conflito.
A Funai de Passo Fundo informou que esta mantendo o contato com a Prefeitura de Charrua, Polícia Federal e MPF com objetivo de solucionar as divergências na comunidade. “Dada a complexidade do tema, ainda não logramos êxito quanto à solução definitiva da questão. Permanecemos em diálogo constante para que se encontre um meio de se restabelecer o convívio comunitário, para que aqueles que se encontram fora do território tradicional retomem suas atividades habituais na aldeia nos próximos dias. Cabe ressaltar que a Funai não tem competência para cercear o direito de ir e vir dos indígenas, e que estes, conforme o texto constitucional, são cidadãos plenos de direitos e deveres, e portanto, protagonistas de seus destinos”, disse o coordenador regional da Funai, Lauriano Artico, em nota.
A Procuradoria Geral da República de Erechim instaurou, em agosto, um inquérito civil para acompanhar a questão e tentar mediar o conflito. A assessoria do MPF informou que ouviu as duas partes e realizou uma reunião presencial com as lideranças indígenas. O estopim do desentendimento não foi revelado pelo MPF já que não há consenso entre as versões relatadas pelas partes. A Polícia Federal de Passo Fundo ainda investiga a prática criminosa na reserva. A reportagem de ON não conseguiu contato com a PF.
Suspensão das aulas e esclarecimentos
A prefeitura de Charrua suspendeu, além das aulas, os festejos cívicos de Sete de Setembro. Mezadri lamenta que aproximadamente 500 alunos estejam sendo afetados com a suspensão das aulas devido aos conflitos.
Na quarta-feira (6) a prefeitura divulgou um comunicado afirmando que está buscando auxílio do poder Judiciário para resolver a situação. Leia a nota na íntegra.
“Desde o início do clima de tensão na Reserva Indígena do Ligeiro, localizada no interior do município, a Prefeitura Municipal de Charrua vem buscando solucionar o caso da melhor e mais rápida forma possível, assiduamente contatando com os órgãos competentes, tanto em esfera estadual, como federal.
Nos últimos dias, o executivo municipal tem mantido contato com diversos órgãos. Foram enviados ofícios e realizadas reuniões e audiências, com a Delegacia de Polícia Federal, com o Ministério Público Federal e com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), solicitando com urgência, medidas jurídicas e força policial no município, a fim de pacificar o conflito, e evitar que mais pessoas fiquem feridas, restabelecendo, desta forma, a ordem e retomando a segurança, sendo que o caos tomou proporções que não podem ser suportadas por toda a população.
Em relação à suspensão das aulas, por tempo indeterminado, na Rede Municipal de Ensino, reiteramos o nosso compromisso com a integridade física dos alunos, professores e funcionários que frequentam as escolas. Frisa-se que no município o efetivo policial é reduzido, acarretando a falta de segurança para a comunidade escolar.
Ainda, destaca-se que o Ginásio Poliesportivo Municipal é o único local público que compreende as exigências da liminar, expedida pela juíza, Dra. Lilian Raquel Bozza Pianezolla.
Diante disso, a Administração Municipal de Charrua confirma que está fazendo o possível para a melhor solução do caso e assim, o bem-estar de todos, além disso, o retorno das atividades escolares para mais de 300 indígenas, que estão há quase um mês sem aulas, e a retomada dos trabalhos nas demais escolas do município. “Assim, ressalta-se o comprometimento de juntar forças com os órgãos competentes para a solução do caso”.