"Quando desembarquei e vi as pessoas segurando a bandeira do meu país, lembrei da minha família, de tudo que havia passado para chegar até aqui. Me abracei nela e chorei muito". O depoimento emocionado de Emerys Urbina, revela o carinho com que os moradores da comunidade São Roque, um distrito na área rural, distante cerca de 9 quilômetros de Chapada, recepcionaram as 10 famílias de refugiados venezuelanos na quinta-feira à noite.
Eles fazem parte do processo de interiorização promovido pela Operação Acolhida do Governo Federal. O grupo saiu de Roraima em uma avião da Força Aérea Brasileira (FAB), na madrugada de quinta-feira, em direção a Porto Alegre. Da capital gaúcha, viajaram até Chapada em ônibus do exército. A chegada em São Roque ocorreu por volta das 21h. Ansiosos em conhecer os futuros vizinhos, as famílias organizaram uma recepção com faixas, bandeiras e uma sopa quente de boas vindas.
A nova casa dos venezuelanos no Brasil é o prédio onde funcionava uma escola municipal, desativada há oito anos. O local precisou passar por adequações. As salas de aula foram transformadas em nove quartos. A estrutura conta ainda com quatro banheiros, refeitório e cozinha. A mobília toda é doação da própria comunidade.
Dos 152 refugiados, pelo menos 20 deles são crianças. A mais nova tem apenas 11 meses de idade. Vindos de diferentes regiões da Venezuela, no grupo há profissionais de várias áreas como: técnico agropecuário, pintor, bioquímico, administrador de empresa, cozinheiras, pedreiro, cabeleireiro, entre outros. Todos deixaram Boa Vista, em Roraima, onde estão reunidos mais de mil venezuelanos refugiados, com a documentação de permanência no Brasil e carteira de trabalho em dia.
O programa de interiorização é gerenciado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), da Agência da ONU para as Migrações (OIM), do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Durante um período de seis meses, cada imigrante receberá do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), um auxílio de R$ 400, podendo ser renovado pelo mesmo período. A alimentação fica por conta da Defesa Civil.
Recomeçando
Aos 36 anos, Emerys Urbina deixou família, casa própria e uma carreira profissional na cidade de Guayana para tentar uma nova vida no Brasil. Formada em administração de empresa, durante sete anos ela comandou as finanças de cinco empresas, pertencentes a um empresário. A decisão da mudança veio em dezembro de 2017, quando tirou férias e constatou que todo o dinheiro recebido não era suficiente para comprar nem mesmo o material escolar dos três filhos.
"A situação foi piorando a partir de 2014. Como eu tinha um salário alto, conseguia manter as despesas da casa. Depois foi ficando muito difícil", conta. Com uma inflação este ano acima de 1.000%, os preços dos produtos alcançaram valores estratosféricos ou sumiram das prateleiras porque os comerciantes não conseguem repor os estoques. "Você paga paga 400% de inflação em cima de um produto. Pela nossa lei, a margem de lucro não pode ser superior a 30%. O salário mínimo é de mil bolívar, enquanto um frango custa 1,5 mil", exemplifica a administradora.
Emerys permaneceu nove meses em Boa vista. De lá mesmo ela encaminhou o pedido de demissão para a empresa em que trabalhava. Para sobreviver no Brasil, trabalhou como cozinheira e chegou a montar um pequeno café, mas o fraco movimento desestimulou os negócios. Desse período, conta que o capítulo mais difícil foi ficar tanto tempo longe dos três filhos, uma menina de 16, e os meninos de 14 e sete anos. Para amenizar a saudade, sempre que podia mandava mensagens pelos aplicativos do celular.
Durante o relato, ela pede uma pausa na entrevista e tira o aparelho do do bolso para mostrar um vídeo gravado no momento em que os quatro voltaram a se encontrar, no início de setembro. Ao avistar os filhos sentados na rodoviária, ela foi se aproximando deles e gravando. Assim que perceberam a presença da mãe, os três correram e se abraçaram. "Quando decidi mudar pensei no futuro dos meus filhos. Deixei eles com familiares, estavam comendo uma vez por dia, estavam todos muito preocupados. Tenho fé de que tudo dará certo aqui no Brasil. Viemos para trabalhar e dar estudos para nossos filhos. Ganhei a bandeira do meu país de presente assim que cheguei", diz emocionada.Profissional na área de administração de empresas, Emerys critica o presidente Nicolás Maduro em atacar a propriedade privada e o controle do estado sobre o comércio.
Futuro
A preocupação com o futuro dos filhos está presente na fala de todos os venezuelanos ouvidos pela reportagem. Jean Carlos Hernandes, 39 anos, deixou Puerto la Cruz há dois meses para viver em Boa Vista. Ele veio para Chapada com a esposa e os três filhos de 4, 12 e 15 anos. Funcionário de uma empresa de petróleo por quase dois anos, desenvolvia serviços nas áreas de pintura, pedreiro e soldador. Com o salário que ganhava no país vizinho, não conseguia levar para casa nem mais o pão.
Atento aos relatos do pai, o filho mais velho, que também se chama Jean, participa da entrevista dizendo ser praticante de luta livre e ter conquistado duas competições na modalide. As medalhas, segundo ele, ficaram para trás. Entretanto, o futuro sonhado não está nos ringues, mas nas alturas. O jovem quer estudar para se tornar piloto de avião.
Amizades
Enquanto a esposa amamenta o filho de apenas 11 meses, o marido, Ali Carrillo, 36 anos, sentado em uma das camas do quarto, elogia as instalações e recepção na comunidade de São Roque. Para entrar no Brasil, a família precisou viajar cerca de 800 quilômetros até Roraima, onde permaneceu durante seis meses. A mulher, Bizharys Meneses, 40, foi a primeira a se aventurar. Ela e o bebê dormiram na praça de Boa Vista por 15 dias, até conseguirem espaço em um dos abrigos. O marido e os outros três filhos, fecharam a casa e viajaram no mês seguinte, deixando tudo para trás.
Carrillo é pintor, pedreiro e músico, mas diz que não havia mais trabalho na Venezuela. " O dinheiro não tem mais valor, para comprar um quilo de arroz é preciso cinco milhões de bolívar", diz. Conseguir trabalho, trazer o irmão que ficou em Boa Vista e mandar dinheiro para familiares na Venezuela são os planos mais imediatos do imigrante. "Já vi que o clima e o povo aqui são bons. Um lugar tranquilo para meus filhos, acho que tudo dará certo a partir de agora".
Integração
Um dos moradores mais antigos da comunidade de São Roque, João Roque Khor, 74 anos, tomou a iniciativa de estreitar os laços com os venezuelanos. No início da manhã de ontem, ele já estava no colégio conversando e trocando informações com os novos vizinhos.
Segundo ele, as cerca de 40 famílias que vivem no local receberam com surpresa o anúncio feito pelo prefeito Carlos Catto. Descendente de alemães, ele lembrou do processo migratório de seus antepassados e italianos na região. "Li muito sobre a história desses imigrantes. Deixaram seus países e mudaram para um lugar totalmente desconhecido. A situação desses venezuelanos agora não é muito diferente. Estamos abrindo as portas para eles", comenta.
Esperança para recomeçar
“Não tínhamos o que comer”, conta Luinit Hurtado, 41 anos, sobre os motivos que o fizeram sair da Venezuela. Embora cansado pela longa viagem feita de Roraima até o Rio Grande do Sul, a força com que o venezuelano segura no colo o filho de dois anos de idade, durante todo o tempo em que conversa com a reportagem de ON, reflete a preocupação que sente pelo pequeno. Pai de dez filhos, embora apenas cinco deles sejam do seu casamento atual, Luine expõe que a possibilidade de não conseguir voltar a ver os filhos novamente, após deixar a Venezuela em março deste ano, assombrou sua mente diversas vezes. “Para sair do meu país, viajei com dois amigos até Pacaraima, na fronteira com o Brasil, mas não tinha dinheiro para comprar uma passagem de ônibus até Boa Vista”, comenta, referindo-se à capital de Roraima, destino de muitos dos venezuelanos que têm imigrado. A alternativa, segundo ele, foi completar os 180km entre as duas cidades a pé, no sol escaldante. “Cheguei a pensar que não conseguiria”.
A vontade de trazer a esposa e seus cinco filhos, com idades entre dois e onze anos, foi o que deu força para que Luinit completasse o trajeto. Em Boa Vista, sem ter onde ficar, instalou-se durante dois meses de maneira precária em uma praça, até ser realocado pela Força-Tarefa Logística Humanitária brasileira no abrigo temporário Santa Teresa. Somente dois meses depois, quando conseguiu vender alguns objetos e juntar dinheiro, pôde buscar a família e um cunhado na Venezuela. “Vim porque quero dar aos meus filhos as condições econômicas, de saúde e educação que não temos na Venezuela. Aqui, com R$ 5 posso comprar arroz e salsicha e preparar para eles comerem. Lá, não consigo comprar isso nem com meu salário. Amo meu país, mas não vejo como poderíamos voltar. O que temos aqui, a fralda e leite para as crianças por exemplo, é ouro. Lá, vivemos uma matança para conseguir esses itens e, por isso, muitas crianças estão morrendo por fome e por doenças”, explica.
Quando fala sobre a recepção vivenciada em Chapada, Luinit não consegue conter as lágrimas e, olhando para o céu, agradece a Deus por tudo que têm conquistado. “Fomos recebidos como artistas. Nunca fui tão bem-vindo em toda a minha vida como fui por nossos irmãos brasileiros. Achei que chegaria aqui e não teria onde dormir, mas temos quartos, comida, estão nos ajudando muito”. Com experiência como cozinheiro e a esposa como administradora de empresas, Luine diz que agora os dois querem conseguir qualquer tipo de trabalho. “Queremos qualquer coisa. Capinar, ordenhar vacas, trabalhar em fábrica. O que nos oferecem, nós fazemos. Quero comprar uma casa, me instalar aqui e trazer meus outros três irmãos que ainda estão na Venezuela”. Otimista, espera ainda, um dia, conseguir reunir toda sua família novamente - além dos irmãos e os cinco filhos do seu primeiro casamento que estão na Venezuela, os quatro irmãos que por enquanto estão em Roraima e os outros três irmãos e a mãe deles, que agora moram na Colômbia. “Quem sabe um dia, se eu conseguir juntar dinheiro, voltemos para visitar a Venezuela, mas não mais para morar”.
Inserção no mercado
Prefeito de Chapada, Carlos Catto explica que o município tomou a iniciativa de fazer o contato com a Casa Civil, oferecendo-se para receber o imigrantes, com o desejo de protagonizar uma ação humanitária. “Sabíamos desse espaço disponível, que poderia ser reformado para abrigar eles, e nos dispusemos a recebê-los. Se temos condições de estender a mão, devemos ajudar nossos vizinhos. São gente como a gente”. Na opinião de Catto, a solidariedade dos chapadenses se deve em muito ao fato de 95% da população do município ser composta por descendentes de imigrantes, que vieram para o Brasil em uma situação muito parecida, de dificuldades na Europa.
Ocupando a 20ª colocação na produção de soja do Estado e abrigando fábricas de laticínios, confecções e calçados, Chapada espera empregar os venezuelanos com agilidade. “Já temos empresários e pequenos produtores interessados em contratá-los e estamos cadastrando o currículo de todos eles para inserí-los no mercado de trabalho com os mesmos direitos e obrigações que os trabalhadores brasileiros. As crianças também serão todas inseridas na escola e receberão aulas de português se necessário”, esclarece o prefeito. A locomoção da área rural até a urbana será feita com a ajuda de um transporte público, que já passa diariamente na região levando trabalhadores e estudantes chapadenses.
Mudança na economia
Na tentativa de estancar a inflação descontrolada, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, lançou no mês de agosto, um pacote de medidas. A principal delas foi o corte de cinco zeros da moeda, que passou a se chamar bolívar soberano.