A escolha

Coluna de Maria Lúcia Bandeira Vargas

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· 2 min de leitura
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É triste ver o olhar embaçado dos meus cães a me mirar. Catarata, dizem os veterinários, tanto no macho quanto na fêmea. Ao completar onze anos, os dois têm lá seus achaques. Dores nas costas e inflamação no ouvido do macho, provável tumor linfático e descompasso cardíaco na fêmea. Tomam seus remédios e vez por outra arrastam o passo, parecem cansados da vida. A vontade de latir não perdem nunca, especialmente se o inimigo é o caminhão do lixo. Embora vivam soltos em casa, também não perdem a gana de escapulir portão a fora, tomar a rua, donos de seus focinhos.

Dia desses fugiram em companhia da mais nova, uma vira-latinha que nem completou dois anos, a vivacidade e disposição em pessoa. Ou melhor, em forma canina. Preocupada com a saúde dos dois velhuscos resolvi sair a catá-los, embora tenha certeza de que sabem voltar para casa, já que essa não é sua primeira escapulida. Encontrei-os num terreno baldio próximo, sobre o qual erguem-se morros e mais morros de terra bem vermelha. Pois bem, a subir e a descer esses morros estavam meus três cães, correndo parelhos, numa farra tremenda. Cavaram buracos, rolaram na terra, provocaram uns aos outros para início de nova correria, felizes da vida. Nenhum velho, nenhum doente ou cansado naquela cena. Fiquei ali olhando, pensativa.

Os cães amam ser livres e poder brincar, embora necessitem muitíssimo de proteção e pertencimento a uma matilha. São necessidades com as quais posso me identificar, talvez daí meu imenso apreço por eles. Por isso me questiono se, doente, cegueta, meio surda e desdentada, sem poder correr, colocar a cabeça para fora da janela do carro em movimento e latir para o lixeiro, eu quereria continuar viva. É claro que o cão não tem consciência de sua finitude e permanece vivo devido à insistência de nossos cuidados. Mesmo assim, me pergunto se estar vivo valeria a pena para ele e não só para mim, que postergaria sua morte para evitar meu sofrimento.

O Conselho Federal de Medicina publicou resolução visando, a meu ver, ampliar o debate e a consciência sobre como vivemos nossa morte. Em caso de doença terminal irreversível cabe ao paciente, enquanto estiver lúcido, decidir se opta por tratamentos para prolongamento da vida ou não. Esses tratamentos muitas vezes pioram a qualidade da vida que resta sem necessariamente prolongá-la por um período significativo. Jamais faria isso com meus cães. Gostaria que eles morressem cercados de carinho, de preferência em casa e sem dor. Não é isso que desejamos a quem amamos?

A essa escolha, seja pela continuidade do tratamento ou adesão a cuidados paliativos, é dado o nome de “testamento vital”. Naturalmente assumo a responsabilidade pelo testamento vital dos animais sob meus cuidados porque nenhum deles é o Stephen Hawking, para o qual o desconforto físico é superado pelo trabalho de um cérebro que possui consciência, planos para o futuro e, diga-se de passagem, se dedica a estudos geniais. Ao cientista brilhante acederíamos sem questionar sua vontade, fosse ela prolongamento doloroso da vida ou aceitação do curso natural da doença. Por que não faríamos o mesmo quanto às decisões dos que nos são próximos? A quem interessaria ver seu familiar vivo, sofrendo a exaustão, preso numa cama, isolado numa UTI, até o último suspiro? Tememos a ausência definitiva justamente porque não sabemos o que fazer com a presença passageira.

A escolha de uma vida boa e uma morte boa. Não é pedir demais, para meus cães, para mim e para os meus.

 

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