Por Tatiana Gassen
Ter filhos é fácil; já criar uma criança talvez seja umas das tarefas mais complexas com que nos deparamos em razão das sutilezas e responsabilidades envolvidas nesse processo. Isso é assim, principalmente, pelo fato de que para transformar um bebezinho em “gente” – alguém que pensa, tem valores, se relaciona com outros, respeita regras e consegue conviver na cultura – é preciso um intenso envolvimento de longos anos, talvez de uma vida toda, o que leva os pais, em muitos momentos, a se questionarem sobre o que estão fazendo. Nesse sentido, hoje e nas próximas semanas, falaremos nesse espaço sobre algumas questões relacionadas à primeira infância, ao funcionamento da criança e de seu mundo e sobre o papel dos pais nesse processo.
A paternidade e a maternidade são um tipo de complexo emocional interno que existe muito antes do bebê nascer. Pai e mãe entram em cena desde que começam a desejar um filho, e o desejo de ser pai ou mãe recobre um espectro enorme de motivos conhecidos e desconhecidos para as pessoas envolvidas. Quando um casal decide ter um filho, está movido por uma série de fantasias sobre como será cuidar de uma criança, as expectativas sobre esse filho, tudo o que imaginam que o bebê virá a ser, as expectativas sobre como ficarão as coisas entre o casal daí para diante, enfim, um bebê pode representar muitas coisas para os pais. Essas expectativas podem ter um formato mais narcisista – como, por exemplo, que o bebê será uma conquista, que preencherá tudo que falta na casa, que vai completar a vida, que vai ser a alegria do casal – até uma genuína vontade de se dedicar a alguém, que implica em assumir outra pessoa sob seus cuidados e responsabilidade. Isto significa que os pais podem ver no bebê outro ser humano ao qual, ainda que desconheçam, se dedicam com profundo compromisso.
Hoje em dia, o processo de criação dos filhos sofre com uma “crise de identidade” do papel de pais. Essa crise gera uma diminuição da disposição genuína do adulto para assumir a sua função, deixando os filhos bastante sozinhos; crianças sozinhas, vivendo por si próprias, acabam por se tornar pequenos ditadores egoístas. Acontece que os pais, de certa forma, também se encontram solitários por falta de sustento subjetivo para exercer sua função, ou seja, estão mergulhados num excesso de informações desencontradas sobre como criar filhos, técnicas de castigo, de ensino e de disciplina facilmente disponíveis em livros e na internet. São mil e uma dicas superficiais e contraditórias que se apresentam como receitas prontas que não funcionam porque criar um filho requer muito mais do que seguir dicas. Falta o essencial, falta a convicção dos pais naquilo que fazem para que suas ações tenham significado.
Para exemplificar, se a mãe coloca a criança de castigo por mentir e a assusta dizendo que um bicho-papão vai lhe pegar porque mentiu – em lugar de dizer-lhe que não quer que minta porque repudia esse ato – está ensinando uma contradição na qual a criança não deve mentir porque alguma consequência externa vai lhe ocorrer, e não porque seu ato fere aquele a quem ela ama. Com isso deixa a criança sozinha, porque não é possível ensinar a alguém nada que não seja parte dos seus valores de verdade. Seria como dizer “faça o que eu digo e não faça o que eu faço”, esperando que a fórmula funcione, quando o único resultado será uma pessoa a mais no futuro repetindo as mesmas frases pobres de sentido.
Sempre que um adulto toma a seu encargo os cuidados de um filho, ele reviverá, nessa relação, todos os dramas infantis pelos quais já passou, com uma diferença: agora, ele não é mais uma criança que se queixa do que recebeu, que pode chorar ou se “emburrar” quando algo não lhe agrada: agora está do outro lado, do lado do adulto que necessita prover, educar e encaminhar para a vida. Assumir esse papel implica em dar o exemplo; mais do que isso, é preciso que os adultos tenham ações específicas com os filhos. Por exemplo: se quero ensinar meu filho a ser trabalhador, não basta ser eu mesmo um trabalhador, mas realizar atos que ajudem a criança a se responsabilizar por suas tarefas e trabalhos, senão serei um excelente exemplo e um péssimo pai ou mãe. Pais são aqueles que auxiliam a criança a lidar com seus desejos desde o nascimento, ensinando ao filho qual o seu lugar em casa e no mundo. Decidir ser pai e ser mãe é uma responsabilidade que se assume com a criança e consigo mesmo, no constante compromisso de rever e repensar o que for preciso para sermos pais melhores para nossos filhos e dar ao mundo pessoas melhores
Tatiana Gassen é psicóloga, membro do PROJETO - Associação Científica de Psicanálise.
A série de textos A criança e seu Mundo – Problemáticas Infantis, começa esta semana e segue por mais quatro edições com temas relacionados às crianças. As publicações fazem parte da homenagem do Medicina & Saúde no mês das crianças.