Rossana Braghini - psicanalista
Em 2001 Nicole Kidman protagonizou o filme Os Outros. Na cena ápice do drama-suspense, a narrativa inverte a lógica da trama que vinha sendo tecida até então. Os Outros, inoportunos e incomodativos, que moravam em sua solitária mansão, não estavam mortos como ela supunha. Estavam vivos. Quem estava morta era ela, seus dois filhos e marido.
Quando pensei em escrever este artigo, que mentalmente intitulava Os Outros, este filme me veio insistentemente à lembrança. Inicialmente cogitei que fosse pela similaridade do nome. Em seguida me dei conta: não é assim que vivemos cotidianamente? Explico. Que nós não vivemos sem os outros e que dependemos deles é um fato. Se não fosse assim, sequer trabalho teríamos e muito menos os serviços que os outros nos prestam. Mas somos também dependentes dos outros em outras situações diferentes, que embora sejam mais sutis, não são menos importantes. Por exemplo, para nos tornarmos sujeitos, dependemos do olhar e aposta do outro materno desde o nascimento, sem o que não seríamos mais que animaizinhos, caso conseguíssemos sobreviver. E, enquanto vivermos, dependeremos dos outros como testemunhas de nossas realizações e infortúnios. De nossas realizações, porque não teria a mínima graça pintar um quadro que ninguém visse, escrever um livro que ninguém lesse ou fazer um jantar que ninguém apreciasse. E dos infortúnios, posto que se os outros não reconhecessem a dor pela qual passamos, nossos traumas se tornariam duplamente terríveis. Em última instância, dependemos dos outros para que testemunhem que estamos vivos, caso contrário poderíamos enlouquecer com facilidade.
Se é assim, por que será que não cansamos de querer afirmar nossa independência do outro? Talvez exista uma razão. Nós estamos vivos. Mas igualmente vivos estão aqueles habitantes incômodos e inoportunos que carregamos dentro de nós, pelos quais muitas vezes pautamos nossos atos. Exemplo simples: Por que tememos sair com uma roupa que não nos cai bem? E talvez, o comentário crítico que tememos pouco ou nada tenha a ver com o outro real. Se é por isso nem os elogios, mas não é deste que estamos tratando hoje. Tem mais a ver com este outro, infeliz, que carregamos dentro de nós, disposto que é, em nosso imaginário, a nos criticar. Portanto, se existe alguém capaz de anestesiar nosso desejo e esmorecer as saídas criativas que ousaríamos em nossas vidas, é esse outro que habita em nosso imaginário. É neste sentido que a lógica do filme se aplica: nos tornamos mortos (em nosso desejo) para aplacar o outro vivo dentro de nós. Ou seja: existe sempre algo que não quer morrer, que não quer abandonar sua posição. Logo, a defesa do nosso eu, injuriadíssimo pela domesticação sofrida desde dentro, desde o nosso imaginário, grita aos quatro ventos quanta personalidade temos e o quão independente somos.
De qualquer forma temos que nos confrontar cotidianamente com este paradoxo: dependemos do outro; então, como termos mais independência deste outro imaginário que, com uma frequência espantosa, transformamos em outro real como se ele existisse verdadeiramente? Mesmo que, não duvido um segundo sequer, este outro imaginário tenha se baseado para existir em figuras bem reais, sem deixar fora deste fato, nós mesmos. Sinistro não é mesmo?