Por Dóris Maria Wittmann dos Santos
"O que é a muda para os pássaros,
a época em que trocam de plumagem,
é a adversidade ou a infelicidade,
os tempos difíceis, para nós, seres humanos.
Uma pessoa pode ficar nesse tempo de muda;
também pode sair dele como que renovada."(1)
Nada mais apropriado, nestes tempos de fim de ano, momento em que falamos de tempos de muda, do nosso tempo de muda – nosso tempo de mudança – do que essa frase da carta de Van Gogh. Não tratamos de mudanças simples, mas profundas, mudanças que vem de dentro, que resultam de um processo difícil justamente por ser profundo. As mudanças duradouras são assim: não são frutos dos tempos ou dos ventos, são frutos de muito trabalho, de trabalho psíquico, trabalho de criação psíquica.
Para nós, psicanalistas, toda criação é uma transformação; uma ação sublime é uma sublimação e, nesse sentido, é pura arte. É disso que queremos falar, desses momentos difíceis que partilhamos todos, tantas vezes, em nossa existência como seres humanos, e da força vital que nos move, ou deveria mover - no sentido de que as experiências possam se converter em vivências capazes de transformar o mundo interno e externo.
Para que se converta emvivência transformadora, uma experiência necessita mobilizar o sujeito; é preciso que contenha força e intensidade psíquicas, que transborde, por sua espessura, as experiências triviais do cotidiano. Contudo, também é preciso haver um ali sujeito que possa dar suporte à experiência, sustentá-la dentro de si mesmo sem ser movido de imediato para a ação, pois tal descarga proporcionaria apenas alívio e não poderia transformar a situação a que se destina atender. A ação que poderíamos chamar de transformadora é aquela capaz de encontrar sentidos, compreensão, elaboração – uma ação específica e satisfatória – dando, assim, conta dos elementos mobilizados. Isso só acontece a seu tempo, leva tempo e também dá trabalho.
São muitas as épocas da vida em que nos encontramos desprotegidos - como pássaros que trocam a plumagem – porque as dificuldades e adversidades fazem parte da existência. A chance que uma pessoa tem de sair das adversidades não está na carga genética; guarda relação direta com sua possibilidade de suportar a angústia dos afetos – efeito interno criado pelos fatos - e criar mecanismos eficazes para se proteger e lidar com esses novos aportes. Essa condição, que vai se gerando dentro do sujeito, para encontrar vias psíquicas de ligação, elaboração e alívio, conduzem ao ato criador.
O que é a vida se não uma sucessão de situações que nos exigem saídas criativas - ou criadoras?
É no sentido de criar, de gerar e de procriar que criamos projetos e estamos sempre mudando. Ao contemplar o esboço de Van Gogh, faço uma associação inevitável: esse ensaio tem como ano de criação o de 1885; dez anos após, Freud escreveria o ensaio "Projeto para uma psicologia científica"; cinco anos depois “A interpretação dos sonhos”, conformando a invenção da psicanálise. Invenção e reinvenção tem tudo a ver conosco: somos, em certa medida, parte realidade e parte projeto. Pois que vivamos nosso tempo de muda, de uma muda muito bem vinda. O ninho que serve de abrigo aos pássaros em tempo de muda nunca permanece – mesmo que se conserve o mesmo – idêntico. É como nossa casa, como nossa mente: nele nos encontramos renovados, fortalecidos e prontos para outros tempos - porque a vida é assim!
1 -Vicent van Gogh, carta 133 a Theo, apud Renato Mezan em "Tempo de Muda" (1998).
Dóris Maria Wittmann dos Santos é psicanalista