Ao longo dos tempos a família sofreu alterações fundamentais, que permitem cem números de questionamentos. Neste artigo (que terá continuidade na próxima semana) me aterei a dois pontos que considero nefastos, posto que impossibilitam viver com mais prazer a “nova família”.
Valho-me da classificação de Elizabeth Roudinesco para pontuar rapidamente as mudanças dos objetivos familiares ao longo dos séculos, para além do cuidado com a prole. A família tradicional, cuja autoridade era eminentemente patriarcal, se mirava nos valores da monarquia. A sua função principal era assegurar a transmissão do patrimônio. Logo, a vida sexual e afetiva dos casamentos não constituía questão (lembram-se dos casamentos precocemente arranjados?). Isso se resolvia de outras maneiras. A família moderna, que a sucedeu, teve início no século 18 e perdurou até meados do século 20. Pautada pelo amor romântico, ela deseja reciprocidade de desejos e sentimentos, que devem permanecer para sempre. A autoridade patriarcal começou a se restringir, ficando compartilhada com a mãe e com o Estado. E, por fim, a família contemporânea, que inicia a partir dos anos 1960, cujo tempo de união será variável, enfatiza as realizações sexuais. Divórcios e novos casamentos são constantes, o que inclui várias recomposições familiares. A autoridade paterna, assim como qualquer tipo de autoridade, é questionada.
Primeiro ponto: as configurações familiares não mudam de um dia para outro. Elas acompanham, passo a passo, as transformações políticas, sociais e as novas descobertas das várias áreas do conhecimento. Ou seja: elas são, ao mesmo tempo, agentes e resultantes de vários fatores imbricados. Por que então responsabilizar a família contemporânea pela dissolução da moderna? E, sobretudo, por que colocar sobre os seus ombros todo peso do mal-estar que paira sobre a sociedade atual? Por que acusá-la de toda a degenerescência, todos os vícios, todos os descontroles, como se todos os males pudessem advir daí?
Segundo ponto: a família moderna, da qual todos os pais desta geração são tributários (mamãe e papai sentados no sofá, felizes, e filhinhos alegres e “quietinhos”, brincando no tapete) é carregada de um ideal sem precedentes? Aliás, um ideal impossível de ser levado adiante, justamente porque em algum momento fracassa. E fracassa por motivos humanos, pela irrupção do sexual, que volta a inquietar um dos cônjuges antes do outro, pela necessidade de reinvenção de algum dos parceiros ou mesmo porque esse sonho cor-de-rosa é carregado de exigências nada cor-de-rosas. Enfim, por que tanta idealização e saudosismo? Não esqueçamos o que os psicanalistas não param de relembrar. Que foi na esteira dessa família (mas não só dela) que as neuroses proliferaram e a psicanálise surgiu como possibilidade de outro destino, não tão funesto, para as pessoas que dela faziam parte. Em outras palavras, que família tão boa e tão maravilhosa era essa?
Terceiro ponto: o problema que nasce da morte da família moderna é que os sujeitos nela envolvidos (pais e filhos), ainda acreditam nela como um ideal possível de sustentar e sentem como fracasso pessoal quando não conseguem fazê-la dar certo. E, assim, reeditam para as novas famílias o mesmo ideal da antiga. Resultado: novo fracasso. E novo fracasso que, vivido como culpa neurótica, impede uma reinvenção mais arejada para outro tipo de família. Outra família, novos arranjos, novas configurações, novas verdades... e não A verdade.
Roudinesco, Elisabeth. A Família em Desordem. Rio de Janeiro, Zahar, 2003.
Texto publicado em 8 de novembro de 2010