Alegrias de fim de ano

Medicina & Saúde - texto da série Tempo de Muda

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Por Francisco Carlos dos Santos Filho

 

“Nada do que posso me alucina

Tanto quanto o que não fiz

Nada do que quero me suprime

O que, por não saber, ainda não quis”

(Jura Secreta – Sueli Costa & Abel Silva)

 

Tempos atrás escrevi uma coluna chamada “Tristezas de fim de ano: por quê?”, onde observei que o ano novo traz consigo temas de início e de fim, com a proposta de abandonar o antigo e passar adiante. Este processo é acompanhado de carga emocional intensa em torno da idéia de balanço e da contabilização das conquistas e dos insucessos, dos êxitos e fracassos, de desejos alcançados e dos que precisam ser adiados ou abandonados.

Para algumas pessoas pode ser muito difícil suportar o que não foi possível ser ou ter no ciclo do ano que se fecha, especialmente se isso representar um ideal que se tornou muito importante para a identidade do sujeito, para seu amor próprio, ou, melhor dizendo, imprescindível para que ele possa valorizar a imagem que tem de si mesmo. Quando assim ocorre, dizemos que esse ideal ou que essa meta, esse desejo, adquiriu valor narcísico, quer dizer, tornou-se responsável pelo equilíbrio da economia interna que regula a autoestima e o valor próprio.

A perda de algo almejado, mediante tais circunstâncias, produz o que chamamos de depressão narcisista, um tipo de tristeza onde a desvalorização de si e a sensação de inferioridade são a tônica central. Épocas de balanço, de início e de fim, de abandono e de recomeço, que são simbolizadas no fim de cada ano ou de cada ciclo de uma vida, são propensas a criar esses efeitos. Se pensarmos na tensão narcísica de não estar à altura de si mesmo ao fechar o ciclo do ano velho, torna-se compreensível o aparecimento de algumas formas de depressão ativadas pelos festejos de final de ano. Pode ser que alguém não suporte não ter a família reunida como desejava; não ter alcançado algo a que se propusera; não poder compor a cena familiar harmoniosa e plena de felicidade idealizada que aparece na TV, ou mesmo não ser capaz de festejar tudo com aquela alegria contagiante que os ideais coletivos propõem a todos quando chega essa época. A perspectiva de chegada dessa data pode, então, ser repleta de angústia, e as “boas festas” não serem tão boas assim.

Mas quais são as alegrias de fim de ano? Não se precisa perguntar muito sobre o porquê das alegrias, porque alegria se aproveita e não se quer saber a razão. Tenho pensado que uma das causas do sofrimento humano reside na relação conflituada com os próprios ideais, muitas vezes transformados em juízes implacáveis a respeito do modo como nós mesmos estamos levando a vida. O problema é que esses juízes costumam executar seus julgamentos a partir de parâmetros muito exigentes e que respondem mais a conflitos internos de ordem neurótica do que a uma apreciação honesta da situação em que nos encontramos na vida. É central no desejo querer o que não se tem, e isso bem que pode mover-nos para diante, na busca daquilo que falta.

Não estou aqui pregando que devamos todos pendurar o Supereu no cabide e não dar ouvidos a critica interna porque isso é impossível. Não conduziria a nada além de um surto de desprendimento seguido de um golpe muito mais forte de culpa posterior. A responsabilidade pelas tarefas e pessoas de que nos encarregamos na vida é nossa, e dela ninguém está livre. O problema é quando responsabilidade se confunde com culpa e a sensação de estar comprometido com alguém ou com algo que se tem para fazer se torna recriminação acompanhada da constante impressão de dívida, gerando angústia.

Fazemos muita coisa sem que possamos avaliar e aquilatar seu grau de importância. Isso acarreta como conseqüência que não poder usufruir adequadamente daquilo que somos e do que construímos. Se uma vez só na vida, com nosso trabalho, fomos capazes de ajudar verdadeiramente alguém, isso significa muito. Significa que uma vida pode ter sido salva, uma rota falida corrigida, e que muitas outras, que dessa mesma vida dependem, serão também preservadas. Mudar o mundo não se pode, certamente – nem prestar o auxílio que queríamos a toda gente – mas se vivermos a experiência de uma vez ter auxiliado a quem precisava e queria, fizemos muito.

Se há autores, literatos ou cientistas, que somos capazes de ler e de entender – cultivando nossa capacidade de surpreender-nos com o que ali encontramos – também isso não é pouco. Se pudermos ler um autor que diga, a respeito do nosso trabalho, algo que nos produza um facho luminoso de prazer, se nos tocou o dom de compreender o que dizem nossos filósofos, estamos vivendo a experiência da inteligência e da racionalidade e realizando um brinde a ela, saudando-a plenamente com a sensibilidade fina de sentir o que nos coube viver. Se um romance, um poema, um trabalho científico é capaz de produzir uma nova significação das experiências que nosso cotidiano nos brinda, esse cotidiano já não merece o nome de rotina. Ter um cotidiano sobre o qual somos capazes de pensar, avaliando-nos a todo instante, repassando nossos passos com o cuidado que eles nos inspiram, estamos vivendo uma experiência, que mesmo repetida todos os dias, faz sentido. A Rotina não. A rotina não se vê e sobre ela não se pensa, apenas se repete; nela não somos capazes de produzir nenhuma significação com qualquer texto que seja, porque ali já não há vida suficiente para isso.

Não se preocupem: não estou sofrendo de nenhuma síndrome de Poliana ou algo assim como um ataque de otimismo ingênuo e cego e nem dizendo palavras que possuam qualquer intenção de autoajuda. Não acredito nisso. Apenas creio que não custa restituir o valor daquilo que fazemos e, em especial, do modo como fazemos aquilo que fazemos. Porque se um filho nos presenteia com um êxito, se é capaz de nos ofertar um gesto de carinho, se sente que nossa companhia o protege e a deseja, isso também não é pouco. Não é necessário escrever o texto de ouro que vai mudar os desígnios da humanidade; nem ter a idéia que será capaz de retirar a pobreza e a miséria da face da terra; e nem ser o sujeito que vai entrar para a história por seus grandes atos. Se pudermos nos ocupar com amor de nossa condição de agentes, saberemos reconhecer o grande papel que aí nos cabe, o que é muito valioso.

A armadilha do desejo é que ele sempre indica uma falta. Sempre. E essa falta nunca se completa de todo. Desejo que é desejo não se esgota, embora haja no mundo tanta falsa oferta prometendo preenchê-lo plenamente. O desejo é desejo daquilo que vemos, mas não temos. Não custa, portanto, tomar o cuidado de não deixar que isso se deslize para o abismo de considerar que só o que não temos é que vale. Num mundo tão veloz e descartável é muito fácil consumir uma coisa para logo querer outra. Sinceramente, não lhes parece que um exame de tudo isso pode acenar com um pouco mais de alegrias ao fim de cada ano?

 

Francisco Carlos dos Santos Filho é psicanalista

 

 

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