Pioneirismo no transplante de pulmão

Medicina & Saúde - Médico que realizou um dos primeiros procedimentos do gênero fala sobre desafios da época

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José J. Camargo é o médico que realizou o primeiro transplante de pulmão da Santa Casa de Porto Alegre. Foi ele também que realizou o primeiro transplante de doador vivo fora dos Estados Unidos. Esta história a pioneirismo deu um novo rumo para a instituição, que hoje é referência neste tipo de procedimento.

Em dezembro do ano passado, o médico foi o convidado da Associação Médica do Planalto (Ameplan) para conferenciar aos associados, na atividade de encerramento dos encontros do ano de 2012. Na oportunidade, ele concedeu entrevista ao caderno Medicina & Saúde, quando contou sua história como pioneiro. José J. Camargo é hoje diretor médico do Hospital Dom Vicente Scherer – Centro de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Confira a entrevista.

 

Medicina & Saúde – Qual era o panorama nacional na época do primeiro transplante? Quais foram os principais desafios?

José Camargo – Fizemos o primeiro transplante de pulmão, quando os transplantes estavam praticamente engatinhando. O transplante de pulmão foi feito antes do de coração no mundo. O primeiro transplante de pulmão foi em 1963. Entre 1963 e 1978 foram feitos 38 transplantes em vários países, mas não deram certo. O paciente que mais viveu, ficou 10 meses e a maior parte do tempo dentro do hospital, na Bélgica. Então surgiu a ciprosporina, a droga que revitalizou os transplantes. O primeiro transplante da segunda fase foi em 1983, e então vários serviços se entusiasmaram e em 1989 foi o primeiro a América Latina, o primeiro do hemisfério Sul, na verdade, porque só tinha sido feito em muito poucos lugares.

 

M&S – Este foi um marco para a medicina da época?

JC – Foi um momento muito importante, porque, comparado com hoje, nós não tínhamos um terço das condições hospitalares que temos hoje. Isso coincide com o período de reerguimento da Santa Casa, que era um hospital muito pobre, que viveu a sua grande crise existencial no início da década de 1980. Em 1989 estávamos definindo rumos e uma das coisas que foi considerada importante pela direção da época era exatamente investir em transplante como uma coisa com dois benefícios. Primeiro, atrairia atenção das pessoas de fora que pudessem, de alguma maneira ajudar na situação. Transplante é uma coisa que tem grande visibilidade. A segunda coisa importante é que transplante qualifica o hospital. Se organizar um hospital para fazer transplante, fará um grande negócio, porque as coisas indispensáveis para um transplante estarão lá, disponíveis para outras pessoas que se tratem no hospital, porque elas não são exclusivas. Quer dizer, vai qualificar laboratório, anestesia, fisioterapia, enfermagem, terapia intensiva, tudo isso vai crescer para se preparar para um transplante. Este foi um momento muito importante da instituição. Daí em diante, o programa cresceu sem parar.

 

 

M&S – Qual o resultado dessa experiência?

JC – Fizemos até hoje 415 transplantes. Isso é dois terços da experiência brasileira. De cada três pacientes transplantados de pulmão do país, dois foram na Santa Casa de Porto Alegre. Depois tivemos um segundo grande momento, que foi em 1999, dez anos depois, fizemos outra coisa pioneira que foi o transplante com doador vivo. Foi o primeiro fora dos Estados Unidos. Só tinha sido feito na Califórnia. É uma estratégia para contemplar uma população que de outra maneira não teria condição nenhuma de se tratar que é a criança, o adolescente. A questão do pulmão tem uma coisa importante que não se pode colocar um pulmão de adulto numa criança porque não cabe, a questão do volume da caixa toráxica. Então alguém teve uma ideia brilhante que foi usar metade do pulmão da mãe, por exemplo, para substituir o pulmão esquerdo da criança e metade do pulmão do pai para substituir o pulmão direito da criança. Então você troca os pulmões doentes da criança por duas metades de pulmões de doadores vivos, em geral pai e mãe. Isso naquela época teve um impacto enorme, porque aconteceu no último trimestre, quando estávamos batalhando verba para construirmos um centro de transplantes na Santa Casa, que acabou sendo concluído em final de 2001 e começou a funcionar em março de 2002.

 

 

M&S – Como é realizar um transplante onde vários membros de uma mesma família são operados?

JC – Tenho muita experiência com cirurgia pediátrica, onde chegam o pai e a mãe na porta do bloco e pedem que cuide do filho. De repente, abre a porta do bloco e entra toda a família para ser operada. Foi aí que eu tive a consciência real do tamanho da enrascada que eu tinha me metido. Transplantei uma menina, que acho que foi a sexta, que recebeu um lóbulo da mãe e outro da irmã, porque o pai era muito grande, não podia doar. Ela tinha sete anos. Quando eu saí do bloco, encontrei o pai no corredor e me dei conta que teve um momento do dia em que toda a família dele esteve operada.

 

M&S – Qual é a estrutura da equipe que participa dos procedimentos?

JC - Clínicos, intensivistas, cirurgiões, anestesistas, cirurgião cardíaco participam do transplante. É uma equipe multidisciplinar.

 

M&S – Quantas pessoas esperam na fila por um transplante de pulmão?

JC – Faz anos que a lista de espera de pulmão gira em torno de 50, um pouco para mais, um pouco para menos. Quando se coloca um paciente que preencheu os critérios de transplante na lista, se não for transplantado em um ano, um ano e meio, não sobrevive. Quando se olha a lista de transplantado do ano anterior, sabe-se que saiu da lista o não transplantado que morreu. Não adianta lista nacional, porque um órgão que está muito distante, não dá tempo de ir buscar. No RS entram os do estado, SC e Paraná, além disso não nos interessa, porque não dá tempo. Não consigo trazer o órgão e implantar num tempo de seis horas, que é tempo máximo, depois disse se compromete o resultado. Diferente do rim, que pode ser implantado até 36 horas depois da retirada. No pulmão, se chegar com mais de quatro horas no centro, já fica complicado, processo já fica comprometido.

 

 

M&S – Qual é o índice de sucesso nos transplantes realizados hoje em dia?

JC – O índice de sucesso hoje é 65% em cinco anos. Só que se chegou no quinto ano, não tem razão alguma para morrer. Nos primeiros 5 anos tem a mortalidade cirúrgica, os rejeitadores. Mas se você olhar o percentual que chegou no quinto ano é muito parecido com o que chegará no décimo ano.

 

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