Por Francisco Carlos dos Santos Filho
Em “Tempos modernos”, Chaplin apresenta a imagem da engrenagem de uma imensa máquina que engole o homem e depois o cospe de volta, desatinado e louco. Ela serve para representar os conflitos de um jovem profissional frente às ofertas, os desafios, caminhos e descaminhos do mundo do trabalho no campo “psi” hoje. Enfrentar com boas indagações os novos modos de organização da vida contemporânea exige uma constante revisão das nossas ferramentas. Precisamos apurar o fio das palavras e cortar a carne dos modos de vida na atualidade, revelando vasos e nervos das novas formas de subjetivação e manifestação do sofrimento psíquico.
É preciso ser contemporâneo para enfrentar a modernidade. Giorgio Agamben, em “O que é o contemporâneo?”, faz uma instigante proposição sobre o que significa ser sujeito de seu tempo. Seguindo Nietzsche, em suas “Considerações intempestivas”, observa que, para tanto, necessitamos “compreender como um mal, um inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se orgulha”. Pertence verdadeiramente ao seu tempo aquele que não coincide perfeitamente com ele, que não está adequado às suas pretensões, e que, neste sentido, é inatual. Por isso, exatamente por esta dissociação, este sujeito encontra-se em melhor posição para perceber e compreender seu tempo.
Esse descompasso não significa viver noutro tempo. O sujeito contemporâneo vive em seu tempo. Ainda que o odeie, sabe que pertence a ele e que a ele deve contribuições. Contemporâneo é aquele que, longe de ser saudosista e nostálgico, tem como seu o tempo de hoje; sabe viver nele e dele servir-se sem alienar-se da realidade em que se insere. Desafiar o próprio tempo não é lutar contra ele, negar-se a ele, mas perceber os defeitos e fissuras que este apresenta para poder abri-las e explorar suas contradições e repetições.
“A contemporaneidade”, prossegue Agamben, “é uma singular relação com o próprio tempo que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distancia; mais precisamente,é uma relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter o olhar fixo sobre ela”.
Quem de nós suporta manter os olhos abertos e olhar fixamente para nossa época, denunciando todo o dia aquilo que a nós mesmos ofusca? Apontar, no dia a dia do trabalho e da vida, contradições, mentiras e falsos caminhos permite não ficar cego, mas obriga andar na mão contrária do senso comum e das tendências de seu tempo. O impacto que sofremos na pele quando adotamos essa posição não é pequeno.É bem mais fácil ficar aderido, adaptar-se por inteiro, entregar-se ao gozo de ser como todos.
“Por isso os contemporâneos são raros”, segue Agamben, “e por isso ser contemporâneo é antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter o olhar fixo no escuro da época, mas também perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar”.
Prof. Dr. Francisco Carlos dos Santos Filho é psicanalista