Por Francisco Carlos dos Santos Filho
No campo psicológico, vivemos numa época empenhada na descrição quase obsessiva de comportamentos e dos modos de ser cotidianos. Procura-se realizar uma classificação destes, criando grupos e categorias pautadas por comportamentos aparentes, como,por exemplo, o adicto ao chocolate, os compradores compulsivos, os hiperativos, os “panicados”, e tantas outras classificações que vão sutilmente, estabelecendo “patologias” a partir de comportamentos. Isso leva a um tipo de especialização semelhante à que fragmentou a prática médica, levando-a a uma clinica sem sujeito. Essa forma de simplificação vai removendo do jogo a subjetividade, a complexidade do sujeito e a noção de estrutura psíquica, criando uma coisificação da alma. Tal superficialidade tem como consequência lógica a simplificação das abordagens terapêuticas. Com um modelo comportamental de terapia e algumas pílulas, toda a gama complexa das manifestações psíquicas humanas pode ser atendida.
Por um lado, um conjunto de etiquetas e, como decorrência disso, uma coisificação da alma e uma prática clínica reduzida ao treinamento e à medicalização. Não é fácil ser contemporâneo frente à força dessa avalanche defendida pelo discurso da “ciência” e massivamente promovida pela mídia. O compromisso a que nos convoca essa situação não é menor. Essa onda veio para ficar e contem, em seu interior, muitos benefícios que aliviam verdadeiramente o sofrimento de muita gente, mas as evidencias de que existem excessos e de que esse modelo – que invade de forma preocupante os meios de comunicação e os currículos dos cursos de formação de psicólogos, fonoaudiólogos, professores, aqueles que cuidam de crianças - está chegando a um esgotamento, são claras.
Em nossos “tempo modernos”, a subjetividade apresenta uma aparente e curiosa contradição. Como se pode ver, pela fama do modelo anterior, há um desejo enorme de pertencer, de se assemelhar, de ser igual aos outros em busca, antes de tudo de uma normalidade: importa é ser visto como normal aos olhos de todos. Impera o desejo de identificar-se e sumir na igualdade da multidão. Ao mesmo tempo, vemos uma necessidade de ser diferente. Essa diferença, no entanto, não está baseada na alteridade ou na singularidade. É, antes de tudo, a necessidade de ser original: pega bem parecer excêntrico. Esses dois traços são contraditórios apenas na aparência. Ambos estão apoiados num transtorno da economia narcísica. O que varia é a manifestação externa, podendo a mesma adquirir uma coloração exibicionista e individualista ou refletir a extrema fragilidade representada na necessidade de ser definido pela norma vigente.
Acreditamos firmemente que existe um estado permanente de felicidade e o buscamos através das ferramentas que a cultura oferece, mais particularmente no consumo e na juventude eterna. Esses mecanismos superficiais ofertados pela sociedade do espetáculo, baseados no culto do narcisismo, retratam a existência de pessoas sempre de alto astral, jovens, capazes, dispostas, inatingíveis, imunes ao erro e bem-sucedidas. Querem levar a crer que a vida pode ser comprada pronta em fórmulas farmacêuticas ou compactada em fórmulas de como ser feliz, como ganhar dinheiro, como criar os filhos, como falar em publico, como comer, transformando os recursos que a tecnologia oferece em fetiches de solução mágica para os dilemas existenciais próprios do ser humano.
Os engodos da modernidade são muitos. Sempre recordo a propaganda de uma universidade que apregoava ser uma instituição afinada com o seu tempo porque ser capaz de entender perfeitamente as exigências do mercado e atendê-las formando profissionais inteiramente adaptados a essas exigências, de modo que seus egressos eram inteiramente absorvidos pelo mercado. Essa capacidade lhe entregava a certeza da eficácia e de estar plenamente adequada ao seu tempo. Se considerarmos o pensamento de Agamben, é exatamente o contrário. Será que a função da universidade é formar profissionais inteiramente adaptados às necessidades do mercado? Isso seria suficiente? Como lugar de produção e difusão do saber, sua função não condiz muito mais com formar pessoas capazes de pensar, sujeitos mais contemporâneos, no dizer de Agamben, e menos absorvíveis pelo mercado? Claro que essa propaganda vai ao encontro das angustias dos jovens com a desocupação e com a busca desesperada por um emprego e um salário da forma mais rápida possível. A absorção do mercado não é daninha em si mesma; torna-se daninha quando se converte no descompromisso de seguir pensado e abandona o questionamento das lógicas de mercado e de trabalho vigentes hoje em dia.
Estes são nossos tempos modernos. Essas engrenagens, das quais procurei descrever uma pequena parte, se apresentam a todos nós como desafios. Se nos deixamos engolir, corremos sérios riscos.
Prof. Dr. Francisco Carlos dos Santos Filho é psicanalista