Anos de chumbo

Coluna de Sueli Gehlen Frosi

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· 2 min de leitura
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Fiz parte da juventude surpreendida pelo golpe Golpe Militar de 1964. Minha turma trabalhava e estudava muito. A tomada do poder pelos militares veio responder aos anseios dos adultos com quem convivíamos em casa, na escola, no trabalho e na igreja. Fomos, portanto, jovens trabalhadores alienados no primeiro momento.

Nos anos que antecederam a o golpe, tínhamos muito medo do comunismo. Havia nos ensinamentos religiosos os conceitos de corpo e a alma, em casa do bem e do mal e na rua do comunismo e do capitalismo. Após o golpe sofremos outro dualismo: A ARENA e o MDB. Fomos, portanto, massacrados por um maniqueísmo que funcionou como uma couraça que nos impediu de enxergar os acontecimentos como eles eram de verdade.

Aos poucos observamos o comportamento de alguns colegas que faltavam aulas, conversavam pelos cantos e desapareciam por dias. Eles rodavam por faltas, geralmente. Tivemos um amigo em particular que sumiu e, quando soubemos dele, estava fugindo para o exterior. Foi seguido pela namorada, que chorava abraçada aos pais e aos irmãos, mas partiu rumo ao desconhecido. Os dois estão juntos até hoje, têm filhos adultos e muito bem de vida.

Mas o comunismo havia sido esmagado e aparentemente estava tudo bem. Os jornais e revistas retratavam famílias felizes, assistindo corridas de cavalos. As mulheres ostentavam chapéus e lindos trajes nos hipódromos. Os bailes eram coisa grandiosa, com debutantes luxuosas. Os concursos de misses eram o ponto alto do ano, quando sofríamos com a derrota das nossas candidatas e amávamos as nossas Martas Rochas, mesmo com umas polegadas a mais.

Nossas diversões eram interessantes. Os festivais da música popular brasileira eram acontecimentos aguardados com ansiedade. Cantávamos junto com os participantes e não imaginávamos que Geraldo Vandré e sua Para Não Dizer Que Não Falei de Flores fossem um símbolo de resistência contra a ditadura. Demorou para percebermos que havia censura feroz às artes, à imprensa e à comunicação em geral.

As notícias de assassinatos, torturas, desaparecimentos foram abrindo gradativamente nossos olhos e assistimos aos últimos anos do regime. Aí foi urdido o plano da Anistia Ampla Geral e Irrestrita, aceita por conter em seu bojo a volta dos exilados e a soltura dos presos políticos. A volta dos nossos líderes foi uma festa! A morte das lideranças e o silenciamento de outras, naquele momento, começaram a tomar um vulto enorme. Alguns não se deram conta de que essa tal Anistia começou a impunidade no nosso país.

Os assassinatos, desaparecimentos, exílios, torturas configuram crimes de lesa humanidade e nunca foram punidos, por que anistiados. Os assassinos e torturadores nunca foram apontados como tal. Sabíamos o que havia acontecido, mas só conseguíamos contemplar as famílias que choravam a falta dos filhos e dos pais e víamos as marcas nos corpos dos que sobreviveram.

Em um primo do meu marido não vi sinal algum, mas assisti ao silêncio torturante a que ele mesmo se impôs, por não conseguir falar sobre os meses em que ficou trancado em porões imundos, sofrendo toda a sorte de violações.

Quem viveu essa época não pode participar de nenhuma caminhada de apoio à intervenção militar, na tentativa de reeditar o que deixou feridas tão profundas na nossa pátria. Já superamos os dualismos e não queremos mais ser reduzidos a tão pouco.

 

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