“O corpo simplesmente não existe de forma separada do psiquismo, contudo, frequentemente temos a ilusão de que a mente tem domínio pleno sobre o corpo, assim como também nos iludimos de que temos domínio pleno sobre a própria mente. O corpo sofre o que a cabeça sofre, assim, quando alguém está com muito medo, treme, transpira, quando muito nervoso, tem dor de barriga, etc. Enfim, o corpo é diretamente atingido pelos afetos”, afirma a psicóloga Tatiana Gassen.
De acordo com ela, desde Freud sabe-se que grande parte do que compõe o aparelho psíquico é desconhecido, é inconsciente, “ou seja, está fora do domínio do raciocínio lógico, da memória consciente e da razão”, comenta. Nas origens dos estudos de Freud, conforme a psicóloga, estavam as mulheres que sofriam de histeria, no final do século XIX e inícios do século XX. Eram mulheres que apresentavam sintomas físicos – convulsões, contraturas, desmaios, cegueira, paralisias de partes do corpo – mas eram até então tomadas como farsantes de seus sintomas, já que eles não tinham a correspondente degeneração física.
“Freud, junto com outros médicos, pesquisavam uma técnica para o tratamento dessas histerias: tratava-se da hipnose. Descobriram que, sob hipnose, os sintomas desapareciam, o membro que estava paralisado tornava-se novamente ativo e era possível manter esse “avanço” inclusive após sair do estado hipnótico. O problema é que esse resultado não durava muito, em breve, o sintoma voltava, ou outros sintomas surgiam em seu lugar. A questão que Freud se fez foi: 'por que havia o sintoma? O que o sustentava? Por que aquela mulher enfermava e porque enfermava daquele jeito?' E foi a partir desses questionamentos que surgiu a psicanálise e a compreensão de que o sintoma tinha um significado psíquico, que a própria pessoa desconhecia, cuja origem era inconsciente”, salienta.
Essas histéricas que Freud tratava não tinham doenças psicossomáticas, segundo Tatiana. “A diferença é que na psicossomática falha a 'ligação' entre a mente e o corpo. Freud descobriu que na histeria, o sintoma físico, tratava de 'traduzir' um sentimento que era muito conflituoso e como que 'impossível de ser pensado', algo que era inaceitável para a mente da pessoa, era convertido para o corpo”. Assim, o sintoma físico tinha um significado simbólico, por exemplo, uma paralisia da perna poderia representar o quanto aquela pessoa estava impedida de “andar para frente” na vida. E, com tratamento psicanalítico, era possível chegar ao significado psíquico do sintoma físico, auxiliar o doente a compreender o que estava sendo representado no corpo e dar outro destino para a vida da pessoa. “Isso é muito diferente do que se passa na doença psicossomática. Nessa enfermidade há presença de efetivo dano físico! E falha essa relação simbólica, entre o conflito psíquico e o sintoma físico, que está presente na histeria. Há como que uma passagem direta para o corpo que impede a simbolização e justo por isso é tão perigoso”, explica Tatiana.
Entrevista
Medicina & Saúde – Como é possível diagnosticar as doenças psicossomáticas?
Tatiana Gassen - Quando há sintoma físico, evidentemente, o primeiro profissional consultado é o médico. Em geral, os diagnósticos provém de um longo histórico de doença que, quando se depara com um médico que tenha a sensibilidade de associar e relacionar o sintoma do paciente com algo psíquico busca auxílio de outros profissionais que possam auxiliá-lo a fazer o diagnóstico. Esse diagnóstico especificamente é multidisciplinar, é necessário que haja a conjunção do médico e do psicólogo para avaliar a potência da subjetividade sobre o corpo. E esse diagnóstico cuidadoso é necessário para também não confundir qualquer doença física com a psicossomática, já que, a grande maioria das doenças não nos atingem por motivos inconscientes, ninguém pega uma gripe, por exemplo, por um motivo inconsciente que a levou a isso. Então, quando se depara com uma situação na qual há a suspeita de psicossomática, a questão necessita ser profundamente analisada, para diagnosticar é preciso tomar em conta a história, os fatores desencadeantes, o que subjaz um comportamento.
Medicina & Saúde - Qual é o momento de procurar ajuda profissional?
Tatiana Gassen - Quando o médico indica tratamento psicológico, poderá ser recebido com estranheza por parte do paciente porque não há nele o sentimento de que algo vá mal com sua cabeça, e sim com seu corpo, falha justamente esse mal estar psíquico, porque está tudo diretamente conectado ao corpo. O primeiro sinal de “melhora”, por mais paradoxal que seja, aparece justamente quando a pessoa começa a sentir um “mal estar psíquico”, um sentimento de mal estar que não seja físico, porque é a possibilidade de ressituar o “mal estar” que até então é absolutamente depositado no corpo, esse mal estar surge como um questionamento, algo como “de onde vem minha dor?” E é importante a questão porque é somente a partir desse tipo de dúvida que se pode iniciar um tratamento, porque se há a certeza de que a doença é física, quando se está diante de um sujeito que cujo corpo serve de palco para grande parte de suas dores psíquicas, é possível que ele não possa compreender, naquele momento, porque pensar além disso.
Medicina & Saúde - Existe tratamento? Como pode ser feito?
Tatiana Gassen - Sim, o tratamento é muito importante. É a única possibilidade de dar outro rumo a isso que fica coagulado no físico, porém é um processo desafiador para todos envolvidos, médicos, psicólogos e familiares, porque informar o paciente do diagnóstico, passar a informação cognitiva do que se passa com ele – inclusive fazendo ligações como: “isso que você está sentindo como dor em tal órgão tem relação com tal evento que se passou em tua vida e sobre o qual você não pôde pensar e sentir” – não é suficiente para alterar o funcionamento psíquico da pessoa. O tratamento é extenso, trabalhoso e multidisciplinar, ou seja, conta com suporte de profissionais de diferentes áreas.
Colaborou
Tatiana Gassen, psicóloga