A Associação Médica Brasileira (AMB), a Associação Brasileira de Psiquiatria e outras entidades profissionais de psiquiatria e neurologia manifestaram-se contra a restrição da oferta pública pela prefeitura de São Paulo do fármaco metilfenidrato, vendido sob as marcas de Ritalina e Concerta e indicado para hiperatividade e déficit de atenção em crianças e adolescentes.
Portaria editada pela prefeitura diz que, a partir de agora, uma equipe multidisciplinar da Secretaria de Saúde avaliará a necessidade que o paciente tem do medicamento e preencherá um formulário com dados sobre a saúde física, psicossocial, situação escolar e familiar dele. Antes da determinação, o metilfenidato era receitado pelo médico do paciente.
Em carta aberta à população, as entidades médicas pedem a revogação da Portaria 986/2014 e destacam que a resolução não tem embasamento científico, nem nos conhecimentos da neurobiologia. Para as associações, a portaria constitui "obstrução abusiva ao acesso ao tratamento farmacológico pela população de baixa renda, além de impor restrição ao pleno exercício e autonomia da medicina e da ciência brasileiras".
“Os diagnósticos de TDAH [transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) e de dislexia não são controversos, ao contrário do que é dito ali. Além de oficialmente reconhecidos pela Organização Mundial da Saúde [OMS], há diretrizes internacionais para sua realização e inúmeros estudos científicos que demonstram alterações no funcionamento cerebral do TDHA. O fato de o sistema americano de classificação das doenças psiquiátricas indicar que não há uma etiologia específica para esses quadros, em nada compromete a realização de diagnóstico e tratamento”, diz a carta das associações.
O texto lembra a luta das entidades médicas pela assistência multidisciplinar às pessoas com transtornos neurológicos e psiquiátricos e dz que tal meta só será atingida com atitudes políticas públicas inclusivas. “A portaria burocratiza o acesso digno ao tratamento, principalmente à população com desvantagem social, e se posiciona com a sistematização científica de maneira mistificadora e indigna”, acrescenta a carta.
A psiquiatra e coordenadora da Unidade de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Ivete Gataz, concorda com as entidades e serviços de pesquisa e considera a portaria um retrocesso. Segundo Ivete, a norma está na contramão do caminho mundial de pesquisa e uso do metilfenidato. “Para nós, foi uma surpresa infeliz entender que, em uma cidade como São Paulo, serão prejudicadas milhares de crianças que usam a medicação e recebem muitos benefícios com o tratamento. E são as mais necessitadas, de baixa renda.”
Ivete ressaltou que aqueles cuja família tem poder aquisitivo continuarão fazendo o tratamento e terão oportunidade de desenvolvimento e sucesso. Na opinião da psiquiatra, além de retirar o direito ao tratamento, a portaria da prefeitura fere o direito do médico de fazer o diagnóstico, porque a criança passará por uma avaliação com outros profissionais (médicos e não médicos) para avalizar a opinião médica. “Isso fere o direito do médico de diagnosticar e prescrever. Será que a rede pública está aparelhada e vai ter condições suficientes de fazer todas essas avaliações? Não é o que percebemos, pois temos dificuldades de encaminhamento porque muitos Caps [centros de apoio psicossocial) nem médicos têm.”
O médico José Rubem Alcântara Bonfim, da Assistência Farmacêutica da Secretaria Municipal de Saúde, porém, disse que a portaria não traz novidades, apenas aperfeiçoa norma existente desde 2008. “O metilfenidato é um anfetamínico e, por isso, necessita de cuidados especiais em sua prescrição. Esse fármaco vem sendo objeto de preocupação de especialistas no mundo inteiro, que recomendam seu uso apenas depois de intervenções educativas e psicológicas.”
Bonfim ressalta que, nos consultórios particulares, quem decide a prescrição são os próprios profissionais, mas, na secretaria, isso será feito pela equipe multiprofissional dos 24 Caps da cidade, como é recomendado no mundo inteiro. “A recomendação é que o tratamento inicial não seja farmacológico, ou seja, deve-se adiar ao máximo a prescrição do metilfenidato. Os médicos no Brasil têm autonomia de prescrever qualquer remédio e isso se opõe às recomendações dos melhores centros do mundo.”
Segundo o médico, o que se conhece a respeito do metilfenidato é o efeito positivo no tratamento inicial de quem tem um conjunto muito grande de sinais. Os benefícios ocorrem nos primeiros meses, mas não se sabe quais serão os efeitos depois de dois anos e nem mesmo a longo prazo. “Todo fármaco encerra riscos e o metilfenidato tem muitos efeitos adversos, então, é preciso que a equipe faça uma avaliação da relação benefício/risco. O metilfenidato deve ser empregado quando os benefícios superarem os riscos”, explicou Bonfim.
Para ele, as críticas das entidades médicas quanto à restrição de oferta não têm sentido, porque o medicamento não está na lista do governo federal, nem na do estadual e não é tão caro quanto se diz. “Minha avaliação é que temos, em primeiro lugar, de nos preocupar com a segurança do paciente.”