Até duas ou três décadas atrás, não se imaginava chamar o doutor para resolver o problema de uma criança que não aprende na escola. O fenômeno é fruto da nossa época e tornou-se tão frequente que é facilmente constatado por quem trabalha no chão da escola. Na educação de crianças, como também em muitas outras áreas, vemos ocorrer a pregnância do ato médico sobre o campo pedagógico, no tocante a problemas tipicamente escolares. É nossa intenção trazer elementos que permitam compreender essa questão e poder problematizar algumas práticas no tocante ao trabalho para o desenvolvimento da infância e seus problemas.Antes de falar de problemas psicológicos ou patologias na infância, dois elementos precisam ser bem entendidos: o que se refere quando usamos o termo infância e o que representa um sintoma numa criança.
A infância: é o tempo da vida em que os processos mentais devem se constituir, formar-se, estruturar-se e ordenar-se. De como se desenvolve a subjetividade e o psiquismo da criança vai depender e muito a saúde mental futura de uma pessoa. Ou seja, é o momento de aprender a pensar, a entender como funciona o mundo, como se dão as relações entre as pessoas, e ter noção do quantum de sofrimento que isso custa.
Quem é pai e mãe sabe o quanto dessa construção vai se dar essencialmente através das trocas que vão ocorrer na intimidade dessa relação da criança com quem quer que se encarregue de desejá-la e tomá-la amorosamente e de uma maneira ordenante. Podemos sentir a força que tem essas relações íntimas na construção da personalidade e da subjetividade de uma criança. O sintoma na criança: Os sintomas comportamentais e psicológicos de uma criança indicam que algo não está bem com ela e refletem um pedido de ajuda, que requer, em primeiro lugar, que haja um adulto que olhe por ela e que faça uma intervenção para ordenar o campo. De uma maneira geral, os problemas da infância se manifestam como sintomas das mais diversas formas e em várias áreas da vida da criança (sono, alimentação, controle dos esfíncteres, dificuldades com separação e socialização, fobias, agitação, agressividade, dificuldades escolares, inibições, etc).
Esses dois elementos precisam ser considerados quando temos que atender a uma criança com dificuldade, seja ela qual for. E aqui nesse ponto reside o problema que queremos chamar a atenção, cujas implicâncias e conseqüências sobre a vida futura das crianças, sobre os processos de subjetivação e de sua escolarização não resta nenhuma dúvida: a patologização e a consequente medicalização da infância, inscritas em um problema de nível mundial muito mais amplo que é a medicalização da vida cotidiana.
Essa tendência que se impõe com hegemonia em nossa cultura vem sendo fortemente advertida por profissionais de diferentes áreas do conhecimento e de diversas partes do mundo, engajados com a defesa pelos direitos fundamentais da criança, cuja vulnerabilidade e dependência colocam o adulto em posição de alteridade e compromisso.
A patologização expressa uma tendência a transformar em doença mental aspectos da vida emocional que fazem parte do ciclo vital de todo ser humano e com os quais temos que lidar. O detalhe é que quando se patologiza, também se medicaliza. Na infância, é possível ver o fenômeno da patologização e medicalização quando se trata com remédios a escolarização, a tristeza, a oposição, o desafio, o desejo de domínio sobre o outro, a rebeldia, os medos, a inquietude, as dificuldades de prestar atenção em aula, elementos que tomam parte da infância de toda a criança.
Desde esse olhar patologizante, perde-se de vista a ideia da infância como tempo de aprender e de se desenvolver, como tempo de vir a ser. Problemas vão dando lugar a etiquetas psicopatológicas. A consideração sobre a construção intra e intersubjetiva do sofrimento da criança passa a ser reduzida a fenômenos de caráter biológico, sem espaço para tomar em consideração as situações de sofrimento pelas quais a criança pode estar padecendo, numa indagação sobre o que demonstram essas condutas de agitação, agressão, desatenção, etc. É necessário um olhar e uma escuta singular e subjetiva sobre o que passa com cada um. Temos que ter em mente que na infância, os diagnósticos devem ser escritos a lápis, pois as crianças são sujeitos em constituição, portanto sujeitos a transformações.
Diagnosticar é um processo muito complexo e fundamental para a indicação da intervenção adequada, que deve ser feito com profundidade e delicadeza, portanto não se limita a enquadrar pessoas em uma listagem de sintomas, apenas categorizando condutas ou afetos. Diagnosticar e patologizar são coisas diferentes. E temos que ter também bem clara a diferença que existe entre medicar e medicalizar. Medicar é um ato médico, e em determinados casos a indicação de medicamentos num processo de tratamento é absolutamente necessária e imprescindível, trazendo benefícios a pessoa que sofre. O que vem preocupando é que a venda desses medicamentos aumentou em proporções gigantescas, inclusive a venda de medicações aplicadas a crianças, indicando que o número de pessoas usando remédio está muito acima dos índices de prevalência que os estudos científicos indicam para as patologias mentais. Medicalizar é isso: tratar problemas não médicos como se fossem. De forma indiscriminada, sem diagnósticos criteriosos. Medicar simplesmente, sem oferecer algo a mais, é deixar de considerar a singularidade da criança que sofre, principalmente por que seus recursos psíquicos não dão conta de encontrar outras vias de alívio de seu sofrimento.
Dr. Marcelo Viñar, psicanalista uruguaio esteve no dia 21 de agosto deste ano, novamente em Passo Fundo, a convite do Projeto – Associação Científica de Psicanálise, para a conferência “A Patologização da Infância e Adolescência”, nos ofertou importantes e profundas reflexões sobre este tema tão relevante.
Fabíola Giacomini De Carli, Luciana Oltramari Cezar e Vivian Nolasco são psicanalistas – Núcleo de Atenção à Educação
PROJETO – Associação Científica de Psicanálise