Os 23 anos de carreira da Promotora de Justiça Ana Cristina Ferrareze Cirne não foram construídos de forma fácil, muito pelo contrário, são o reflexo de muito estudo, trabalho e dedicação de quem garante ter encontrado sua missão na vida: trabalhar em favor da sociedade.
Formada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo, hoje à frente da Promotoria Regional da Educação, Ana percorreu um longo caminho para chegar onde chegou. Caminho este que iniciou logo após a formatura, quando foi aprovada nas escolas da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, a Ajuris, e na Escola Superior do Ministério Público, decidindo cursar as duas ao mesmo tempo com o objetivo de se preparar para a vida profissional. “Estudei muito, em média 10 horas, cinco dias por semana. A Escola da Ajuris mostrou-se fundamental para a minha formação, mas foi na Escola do MP que tive certeza da minha vocação: trabalhar em uma Instituição independente, livre, ética e autônoma, garantindo a efetividade dos direitos fundamentais da pessoa humana e, especialmente “dar voz” aos que geralmente não são ouvidos; trabalhar em defesa de causas sociais, direitos coletivos e difusos, que são de todos e de ninguém, ao mesmo tempo; lutar pelos direitos de crianças, adolescentes, minorias, trabalhando para a existência e efetividade das políticas públicas a que todos têm direito, para uma vida melhor e mais digna. “Sou assim mesmo. Idealista e persistente na busca do que acredito”.
O ingresso no Ministério Público aconteceu em 1993, sendo que escolheu Ronda Alta como sua primeira Comarca. Depois foi para Não-Me-Toque e finalmente promovida para Passo Fundo, onde trabalha até hoje por escolha própria, principalmente por considerar Passo Fundo como sua “cidade do coração”, assim como Ciríaco, sua cidade natal. Ao longo desses anos todos trabalhou em muitos projetos, muitos deles inovadores. Empenhou-se para que a matéria da infância e juventude fosse atendida por dois promotores, um para trabalhar com atos infracionais e outro para atuar na esfera protetiva, conquista da qual muito se orgulha: “Foi uma das grandes batalhas que eu enfrentei porque foi a primeira cidade do interior do estado em que ocorreu essa divisão: protetiva e sócio-educativa. Essa é uma questão que eu considero bem peculiar da minha vida. De certa forma, sempre acabo me voltando para questões que ainda não estão desbravadas, que são novas, pioneiras. Felizmente, eu acho isso bom, acho que dá energia, um novo ânimo para o trabalho”. Além dessa conquista, a promotora ainda foi responsável por uma série de projetos que existem até hoje, dos quais ela sente orgulho em dizer que realmente “deram certo”, como o projeto Registre seu Filho, em que as crianças já saem registradas do hospital, sem qualquer burocracia, e do Teste do Pezinho, Orelhinha, Olhinho, todos feitos gratuitamente.
Foi somente a partir de 2007 que se voltou mais diretamente às questões relacionadas à educação, e em 2011, junto com outros colegas, sugeriu a criação de Promotorias Regionais da Educação. “Entendo que o caminho para a prevenção de problemas maiores, como atos infracionais, crimes; para a mudança de mentalidade nas questões de cunho político-partidário; para que, principalmente, crianças que estão em vulnerabilidade social possam ter a sua independência intelectual, social e material, por exemplo, o direito à educação de qualidade é, definitivamente, o melhor caminho”, comenta. A criação oficial da Promotoria aconteceu em 2013 e Ana assumiu a responsabilidade. Hoje, atende 30 comarcas, distribuídas em 145 municípios. “ O Ministério Público do Rio Grande do Sul foi inovador nessa questão, pioneiro, mostrou uma “nova face” e hoje está sendo referência para todo o país”, orgulha-se.
Para a Promotora, tantas conquistas são reflexos da garra ainda do início da carreira, que hoje se transformou em um propósito de modificar a realidade da sociedade através das ações relacionadas à infância e a educação: “O grande diferencial deste trabalho é a relação de integração operacional, em que os problemas e as ações vêm de uma demanda da comunidade, não imposta pela Promotoria, muito mais horizontal do que vertical. Respeito e autoridade não se obtêm com autoritarismo ou enfrentamento, mas com diálogo e construção coletiva de propósitos comuns”.
“Quando há respeito, a gente evolui”
Apesar de tantas conquistas, nem tudo foi fácil e assim como muitas mulheres, Ana Cristina precisou mostrar que os anos de estudo foram bem mais importantes do que qualquer preconceito. “Sempre que falo sobre o assunto, lembro de uma história que vivenciei no início da minha carreira: comecei muito nova, cheia de vontade de trabalhar, muito estudiosa. Na época, eu era a terceira Promotora a trabalhar na Comarca, e Ronda Alta ainda tinha um certo “ranço machista”. Logo nos primeiros dias de trabalho, um senhor insistiu que gostaria de ser conversar com o “senhor Promotor”. Timidamente, apresentei-me como Promotora e ele recusou a ser atendido, dizendo que não falaria com uma mulher, nova e sem experiência”. Foi algo que me marcou, pelo preconceito, e pela impossibilidade de ajudá-lo, uma vez que estava pronta para isso”, lembra.
No caso dela, essa foi uma questão muito pontual, já que sempre se sentiu respeitada dentro da instituição em que trabalha, mas acredita que ainda existe muito preconceito, principalmente voltado à mulher. “Há muito preconceito sim, muita violência, muita falta de sensibilidade, muita diferença no olhar”, ressalta. Segundo ela, o maior dever, principalmente para quem é mãe, é ensinar os filhos a respeitar: “Quando há respeito, a gente evolui. Eu prezo pelos direitos das mulheres, com todas as suas peculiaridades. Acho que homem e mulher são seres diferentes sim, ambos com suas qualidades e diferenças, e isso não quer dizer que a constituição e as leis devam priorizar um ou outro, muito pelo contrário. É na linha de raciocínio de tratar 'desigualmente os desiguais', sempre com muito respeito”.
Família x trabalho
Com tanto trabalho, talvez o seu maior desafio seja conciliar com a vida familiar. Mãe de dois filhos, Gabriel, de 16 anos, e Ana Victória, de 9, Ana garante que seus dias não tem monotonia, é sempre um desafio novo, um jogo de quebra-cabeças, mas que teve algumas facilidades. “Quando me casei e tive meus filhos eu já trabalhava, então já tinha uma rotina organizada. Minha família me ajudou muito. O pai dos meus filhos é uma pessoa super dedicada a eles, tem a mesma profissão que eu, então entende as dificuldades que enfrento. Tenho pessoas muito competentes e boas ao meu lado, tanto no trabalho quanto em casa, e que merecem grande reconhecimento da minha parte porque me ajudam a manter essa estrutura para trabalhar”, conta. Mesmo assim, ela admite que quase nunca é fácil e que fica muito dividida, mas vê isso também como uma forma positiva e uma grande experiência para os filhos, já que além do exemplo, mostra a eles o valor de trabalhar por algo que se ama de verdade: “Isso é se apaixonar por um projeto de vida e não há o que pague. Eu sempre desejo que meus filhos descubram a vocação deles, a missão, e que tenham a possibilidade de se dedicar a isso, seja qual for. Eu sou muito feliz, muito grata porque meus filhos são independentes, eles têm a solidariedade e a empatia pelo ser humano como uma coisa muito forte”.
Já quando o assunto é cuidar de si mesma, Ana Cristina admite que é vaidosa, mas que já foi muito mais: “Existem coisas que com o passar do tempo deixam de ser prioridade, e outras que não eram passam a ser. Agora acho que mais importante que a vaidade é o cuidado com a saúde, física e mental, comigo mesma, principalmente com a autoestima. Acho que a mulher tem que prezar por isso, porque não é possível cuidar de outras pessoas sem dar atenção especial às suas próprias necessidades, e isso é bem complexo, é um exercício diário”.
Outra questão importante que diz que a maturidade lhe trouxe foi a de se conhecer, saber exatamente seus valores, e a partir daí nortear a própria vida. “Sempre haverá críticas, assim como elogios, independemente do que você faça, mas à medida que temos consciência de nossos valores, convicções, tudo fica mais simples”, lembra.
Hoje, seu maior orgulho é ver que com 23 anos de carreira e dois filhos, conseguiu o equilíbrio que tanto se busca na vida, mesmo que não tenha sido fácil. “Consegui equacionar as questões de forma a deixar um legado. Eu vejo que foi difícil, nada foi de graça, foi muito estudo, muito esforço, foram renúncias, escolhas, mas vejo tudo de forma positiva. Também acredito que ainda muitas coisas para realizar, tenho muito para contribuir, me sinto cada vez mais motivada. Na verdade eu tenho vocação para a felicidade. A vida é um dom tão precioso que eu acho que não dá para perder tempo achando que o mundo está contra”, ressalta. Já para quem está iniciando sua caminhada, a Promotora tem um conselho: “Acho que o essencial é encontrar a sua verdadeira vocação, e amar o que faz, e por causa disso fazer o seu melhor. Entender as dificuldades como oportunidades de crescimento e evitar que outras influências que vão de encontro aos seus sonhos possam lhe tirar o foco”, finaliza.