Quando o diagnóstico apontou Esclerose Múltipla, em outubro de 2015, a jornalista Ingra Costa e Silva, de 25 anos, sentiu o mundo se transformar num instante. O pouco que conhecia sobre a doença, colaborou para que a agonia e ansiedade inicial se transformassem numa espécie de desespero. “Costumo dizer que o que acontece quando recebemos o diagnóstico de Esclerose Múltipla (EM) é que o médico te olha nos olhos, tira o pino de uma granada e gentilmente a coloca no teu colo. A sensação é exatamente essa. Em seguida, e como nos desenhos animados que o mundo vai ficando grandão e você pequenininho, até sumir no meio de tudo”, lembra. Assim como Ingra, outros 35 mil brasileiros carregam a mesma sensação; no mundo, cerca de 2,5 milhões de pessoas são diagnosticadas da mesma maneira. Ainda assim, pouca gente sabe do que realmente se trata. Sem cura, a Esclerose Múltipla, doença neurológica, crônica, autoimune e de causa desconhecida, tem sido o foco de estudos e pesquisas por todo mundo que apontam que, apesar de todas as consequências, o paciente pode, sim, conviver com ela. Exemplo disso é a Ingra que, desde que descobriu a doença, luta, a cada dia, para ver a Esclerose como uma companheira e não como uma limitação.
Descoberta
Conhecida por ser uma doença silenciosa e imprevisível, a Esclerose Múltipla atinge, especialmente, jovens mulheres de 20 a 40 anos e é diagnosticada, em geral, a partir de um surto: com duração e intensidade diferentes em cada indivíduo, geralmente se manifestam através visão embaçada, fadiga, espasmos musculares, falta de equilíbrio, dormência em qualquer parte do corpo, urgência ou incontinência urinária, problemas de memória, dificuldades na fala. Para Ingra, a ausência de sensibilidade em uma das mãos foi o que indicou que algo estava errado. “Os sintomas começaram muito sutis em agosto de 2015. Percebi que a sensibilidade na minha mão direita estava um pouco alterada, como no inverno quando estamos com a mão gelada e demoramos para sentir o toque”, explica. Em duas semanas, todo o lado direito carregava a mesma sensação. Da consulta com um clínico geral, Ingra foi encaminhada para um exame de ressonância magnética e para um neurologista. Logo, outros sintomas começaram a se manifestar: mão e braços formigando, a perna ficava pesada e as sensações iam e voltavam em questão de segundos. “Do consultório fui encaminhada para o hospital para realizar pulsoterapia e tentar zerar a chance de sequelas desse surto”, relembra. Quando se trata de Esclerose Múltipla, o diagnóstico precoce talvez seja o principal aliado da doença. “Várias pesquisas mostram que o tratamento nos estágios inicias da doença melhora o prognóstico a longo prazo, diminuindo sequelas neurológicas e melhorando a qualidade de vida das pessoas com EM”, coloca o neurologista Alan ChristmannFröhlich.
A busca por informação
Com o diagnóstico, surgem a ansiedade, o desespero, a tensão e a preocupação.Como lidar com algo que não se tem conhecimento? Assim como grande parte da população, a jornalista pouco sabia sobre Esclerose Múltipla. “A única informação que eu tinha era que ia terminar em uma cadeira de rodas, que eu perderia meu intelecto – e tudo isso estava bem errado”, ressalta. Apesar dos sintomas da doença durarem poucos segundos, o que ela causa, no entanto, vai além: as células de defesa do organismo atacam o próprio sistema nervoso central, provocando lesões cerebrais e medulares que podem culminar, com o decorrer do tempo, no acúmulo de incapacitações neurológicas. “Quando se recebe o diagnóstico de uma doença que não tem cura, que atinge um pedacinho do cérebro que manda todas as informações para o resto do corpo, que o tratamento não tem nem 50% de garantia de eficácia, que é uma doença rara e que sequer existe explicação para a sua causa, a primeira coisa que pensa é: “ferrou” e a segunda é: “porque comigo? Tão nova? Não vivi nada ainda!””, relata a jornalista.
Logo depois do susto inicial, Ingrase engajou em uma busca por informação. “O mais difícil é colocar a cabeça em ordem. A tua percepção de mundo muda completamente! Foi muito difícil enfrentar dor, exame, diagnóstico, família que não sabia lidar... mas encontrei na minha profissão o refúgio para começar a digerir todo o tsunami de informações que eu recebia. Comecei a pesquisar tudo que podia sobre esclerose, ainda no hospital, pelo celular. Procurei páginas no facebook, blogs, sites, artigos, tudo!”, comenta e acrescenta, ainda, que o apoio das pessoas que estavam ao seu lado foi essencial para acalmar a ansiedade após o diagnóstico. “Quando se recebe um diagnóstico desses, principalmente sem ter conhecimento sobre o que se trata, você literalmente perde todas as suas forças e o apoio dos amigos e da família é muito importante no processo de aceitação e enfrentamento das dificuldades.A situação é irreversível e já que temos que lidar com ela, que seja com o apoio e carinho dos nossos”, coloca.
Desconhecimento
A partir do momento que entendeu, de fato, como a Esclerose agia em sua mente, Ingra percebeu que, apesar de a vida estar mudando, ela continuava a mesma. “A doença sem dúvida não é um “fardo fácil” para carregar. Tanto os sintomas, como o fato de ter que fazer o uso de um remédio injetável três vezes por semana ou os efeitos colaterais que esse remédio causa são situações chatas, mas que com o tempo você aprende a lidar afinal, não tem escolha. É algo que você se acostuma”. A escolha por enxergar a situação como umaexperiência construtiva possibilitou que, aos poucos, as coisas se ajeitassem. O principal obstáculo deixava de ser a doença e se tornava o preconceito com ela. “Apesar de toda a rotina ligada ao hospital e a remédios, a principal dificuldade é, ainda, a reação das pessoas. Muitas pessoas reagem com pena, pois acham que esclerose mata ou algo desse gênero. Tem ainda quem acha que é frescura, pois eu “estou normal”. Ainda existem aqueles que ao invés de darem força, ficam pontuando todos os exemplos de pacientes que acumularam sequelas de surto. Falta empatia nas pessoas, para se colocar no lugar, tentar entender ou simplesmente ter a humildade de dizer que não entende e pedir pra eu explicar. Diria que as pessoas ainda não sabem lidar com a Esclerose”.
A busca por informar
E foi justamente ao perceber a forma como as pessoas reagiam à doença que Ingracompreendeu que havia a necessidade não apenas de ela se informar e entender a doença, mas de disponibilizar o máximo de informações possíveis para aqueles com quem convive. “Quanto mais eu pesquisava, percebia que além de rara, era mais e mais complexa e por isso era tão difícil que as pessoas tivessem esse conhecimento. Aliei então a minha nova companheira com uma paixão antiga: o jornalismo. Utilizo todos os espaços que posso para falar do que creio ser importante. Pode não parecer para quem nunca precisou procurar pessoas com alguma característica em comum para poder se entender, mas para quem já esteve nessa situação é muito importante encontrar alguém com quem conversar”, coloca.
Aprendendo
Quando tratada, de forma individualizada e multidisciplinar, a EM deixa de ser uma limitação ou uma doença impeditiva. “A EM tem curso e apresentação variável. Sem tratamento, os pacientes podem ter menos de um a vários surtos por ano.Com o avanço nas diferentes formas de tratamento da doença, se diagnosticada precocemente, a maior parte dos pacientes pode ter uma vida absolutamente normal, exceto a necessidade de realizar consultas e exames periódicos. Atualmente, existe o conceito de doença livre de atividade, o que significa que o objetivo do tratamento é manter o paciente livre de surtos, sem novos sintomas, bem como manter completamente normal a capacidade funcional do indivíduo”, coloca o neurologista.
Hoje, quase um ano depois de receber o diagnóstico, Ingra vê a doençacomo presença constante. “Eu diria que não enfrento mais a EM: aprendi a viver com ela já que vou estar com ela até o final da minha vida. Somos companheiras agora. Creio que por isso não tem sido tão difícil. Aprendi a respeitar meu corpo quando ele dá sinais. Aprendi a conviver com as sequelas invisíveis que ela deixou, como a perna esquerda que às vezes fica dormente e eu paro de sentir, mas que não altera em nadinha nos meus movimentos, então tá ótimo. Aprendi a conviver com as puxadinhas que os espasmos causam na perna e que no fim das contas, dá pra acabar fazendo piada disso ou da fadiga, que às vezes aparece e é sinal que é hora de descansar. O segredo é respeitar o próprio corpo e levar o mais “de boa” possível, tentar aprender com todas as situações que se é posto à prova, por mais difíceis que pareçam. O diagnóstico te faz ver a vida de outra maneira e isso se refletiu também na hora de dar seguimento ao tratamento”, conclui.
Sintomas mais comuns
Fadiga
Alterações fonoaudiológicas
Alterações na bexiga e no intestino
Transtornos visuais
Problemas de equilíbrio e coordenação
Alteração na sensibilidade
Transtornos cognitivos
Transtornos emocionais
Fraqueza muscular
A Esclerose Múltipla é uma doença neurológica que
- não é uma doença mental,
- não é contagiosa,
- não é suscetível de prevenção,
- não tem cura e seu tratamento consiste em atenuar os afeitos e desacelerar a progressão da doença.
Memórias de um esclerosado
A imagem que estampa a capa desta edição do caderno Medicina&Saúde faz parte do acervo de Rafael Corrêa, gaúcho que utiliza a arte – através da história em quadrinhos - para detalhar a sua experiência com a Esclerose Múltipla, diagnosticada em 2010. Em sua página no Facebook e Tumblr, “Memórias de um Esclerosado”, Rafael publica diariamente, tirinhas que exploram situações da EM e as formas que encontra para lidar com ela. Hoje, tem quase 10 mil curtidas na página.
*Colaborou Dr. Alan ChristmannFröhlich, Neurologista do Serviço de Neurologia e Neurocirurgia SNN) e Supervisor do Programa de Residência Médica em Neurologia da UFFS / HSVP