O aumento expressivo no número de casos de sífilis e a constatação de uma nova epidemia da doença em todo o Brasil, no início do segundo semestre deste ano, vêm mobilizando o Ministério da Saúde em ações e campanhas nacionais de combate às doenças sexualmente transmissíveis (DST). Em 2015, 65.878 casos foram registrados, o que equivale a um aumento de 32% quando comparado a 2014. Deste número, 25,9% concentra-se apenas na região Sul, a segunda com o maior número de casos. E os números podem ser ainda maiores. Nos estágios iniciais, a infecção não apresenta sintomas graves e, por isso, é conhecida como um problema silencioso, que muitas vítimas demoram a descobrir. Com o desconhecimento, os casos não são notificados e ficam fora dos dados oficiais.
A sífilis tem origem antiga e foi considerada muito perigosa durante toda a Idade Média, quando deixou milhares de mortos. Pode ser contraída por meio de relação sexual sem uso de preservativo com pessoa contaminada, contato com sangue infectado ou transmitida da mãe portadora de sífilis para a criança, durante gestação ou parto, como é o caso da sífilis congênita. Durante diversos anos, levantamentos mostraram os homens como as maiores vítimas dessa infecção, mas as mudanças sociais e temporais não se refletem somente em um crescimento geral de pessoas contaminadas – se refletem, também, na mudança de perfil delas. Enquanto em 2010, a incidência de sífilis em homens era maior, com cerca de 1,8 caso para cada caso entre mulheres, essa média caiu ligeiramente em 2015, registrando 1,5 homem para cada caso em mulher. Apenas nos primeiros 10 meses deste ano, nos 62 municípios gaúchos de responsabilidade da 6ª Coordenadoria Regional de Saúde (CRS), foram diagnosticados 339 homens e 320 mulheres com sífilis adquirida. Em um período de seis anos, totalizam-se 2366 casos.
Com a crescente vulnerabilidade das mulheres, cresceu também a ocorrência de sífilis congênita. No último ano, dos 65 mil casos de sífilis registrados, pouco mais da metade foram diagnosticados em gestantes. Número refletido nos casos de bebês portadores de sífilis: em 2010, a cada mil bebês nascidos vivos, 2,4 eram portadores da doença. Em 2015, a média chegou a 6,5. Passo Fundo é exemplo da existência da epidemia: a média de sífilis congênita passou de 3,4 em 2010 para 25,3 em 2015, quase quatro vezes maior do que a média nacional no mesmo ano, conforme levantamento do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). De acordo com os registros da 6ª CRS, foram notificados, nos municípios em que a coordenadoria atua, 140 casos de sífilis na gestação e 75 casos de sífilis congênita neste ano. Quando os dados são comparados, é possível perceber que praticamente metade das gestantes com sífilis repassam para o feto a sífilis congênita.
A quase triplicação da média nacional levou as campanhas recentes a reforçarem a importância de testes que detectam a sífilis durante o pré-natal. Assim, a gestante e seu parceiro podem ser tratados de maneira correta e evitam a transmissão vertical ou o aborto. O ginecologista e obstetra, Luiz Tadeu Pereira, associa a situação epidemiológica à falta de consciência e esclarecimento. “Há uma falta do acompanhamento correto. É aquele pensamento ‘Eu não sinto nada, então não preciso ir ao médico’. Muitas mulheres só descobrem que têm sífilis quando já estão grávidas.” Ele salienta que o tratamento é rápido e de fácil acesso na rede pública. Na fase inicial, duas doses de penicilina costumam ser suficientes para curar a sífilis. “O mais importante é estimular o pré-natal, pois uma vez que seja feito o diagnóstico, o tratamento é o mesmo dos demais casos e evita que passe para o bebê”. Luiz relembra que a sífilis é uma doença antiga e que sempre esteve presente na população, mas antes de 2011 os profissionais que diagnosticavam pacientes com sífilis não tinham a obrigação de notificar os casos. Assim, muitos passavam sem registro e os números pareciam menores.
Enfermeira no Serviço de Atendimento Especializado de Passo Fundo, Seila Abreu percebe no dia-a-dia da profissão os dados encontrados no Boletim Epidemiológico de Sífilis, produzido pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais: na maioria dos casos, as gestantes portadoras de sífilis são jovens adultas. Dos 146 casos com mulheres grávidas notificados em Passo Fundo no último ano, 74 tinham entre 20 e 29 anos. “Se em outras décadas a moda era estar com cigarro na mão, agora a moda é estar com copo de bebida. As pessoas saem, bebem, usam drogas... Se já é difícil colocar o preservativo quando você está em um momento de paixão, imagine quando está bêbado ou sob efeito de outras drogas”. A enfermeira também percebe que não se trata somente de um aumento nos casos de sífilis, e sim de todas as DSTs, mas como muitas não são de notificação compulsória – como é o caso da gonorreia – os números não chegam ao conhecimento popular. “É realmente uma questão social e não por falta de medicamentos. Passo Fundo não sofreu com o desabastecimento de penicilina. É preciso que se conscientizem. A população não pode ficar atenta somente quando as campanhas e os dados assustam”.
Quais são os sintomas?
Causada pela bactéria Treponema pallidum, a sífilis pode se manifestar em diferentes estágios (primária, secundária, latente e terciária, respectivamente). Os estágios primário e secundário carregam nível de transmissão superior aos demais e exigem atenção aos sintomas. Por sumir em questão de semanas, algumas pessoas, sem saber que são portadoras de sífilis, acreditam que o desaparecimento das feridas significa que estão curadas e deixam as preocupações de lado.
- Na fase primária, é comum o aparecimento de feridas no local de entrada da bactéria. Elas costumam aparecer de 10 a 90 dias após o contágio e não coçam, não doem, não ardem e não têm pus.
- Na fase secundária, há aparecimento de manchas no corpo; não coçam, mas podem apresentar ínguas (caroços). Estes sintomas são notáveis após a cicatrização espontânea das primeiras feridas.
- Na fase latente, não aparecem sinais ou sintomas e tem duração variável. Pode ser interrompida com o sinal de sinais ou sintomas da fase secundária e terciária.
- A fase terciária, que surge de dois a 40 anos depois da infecção e pode levar à morte, costuma apresentar sinais e sintomas como lesões neurológicas, cutâneas, cardiovasculares e ósseas.
Sífilis congênita
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima anualmente 300 mil mortes fetais e neonatais em todo o mundo, em decorrência de sífilis na gestação, e 215 mil crianças em aumento do risco de morte prematura. Na maioria dos casos de sífilis congênita, os sinais e sintomas estão presentes já nos primeiros meses de vida, e é comum que a criança portadora de sífilis seja “frágil”, com incidências de pneumonias, feridas no corpo, cegueira, dentes deformados, problemas ósseos, surdez ou deficiência mental, podendo vir a óbito de acordo com a gravidade da doença.
A ausência ou a baixa qualidade da atenção pré-natal é um dos fatores de risco mais significativos para a aquisição de sífilis congênita. “O tratamento adequado, iniciado antes de 18-20 semanas de gravidez, independente do estágio da doença materna, apresenta eficácia de quase 100%, ou seja, evita que o bebê nasça com sífilis congênita”, explica a infectologista pediátrica e coordenadora do programa de residência em infectologia pediátrica do Hospital Federal dos Servidores do Estado, Márcia Galdino.
Todas as gestantes devem realizar teste sorológico para sífilis na primeira consulta, repetindo o teste no terceiro trimestre (em torno de 28 semanas) e no momento do parto ou aborto. “A repetição do exame é importante, pois muitas mães adquirem a doença durante a gravidez e o diagnóstico é realizado na hora do parto, quando já não é mais possível evitar a doença na criança”, destaca.