Lúcia* tem um sonho: poder andar na rua, ir para o trabalho e conversar com os colegas sem usar uma máscara. Lúcia é o nome fictício que precisamos dar para proteger a mulher de 43 anos que é mãe, tem a carteira de trabalho assinada e não guarda pendências na Justiça, mas ainda assim precisa proteger sua identidade. “Meu sonho é poder dar essa entrevista podendo mostrar meu rosto, para que as pessoas vejam e digam: essa mulher é forte, ela luta para que as pessoas saibam sobre o HIV”, disse ela enquanto conversávamos em uma sala pequena e clara do SAE, o Serviço de Atendimento Especializado de Passo Fundo. Seu nome será preservado aqui por um único motivo: garantir que Lúcia não perca seu emprego. A máscara que usa é para proteger-se do estigma social que ainda existe sobre portadores do vírus HIV, o causador da Aids. Um preconceito que não é explícito, mas existe. O HIV está entre nós e sua presença não é um retorno, mas uma batalha incessante que nunca termina.
Passado o Dia Mundial de Combate a Aids, comemorado neste 1º de dezembro, não temos motivos para celebrar: a epidemia segue fazendo vítimas no mundo todo e Passo Fundo não está distante disso: desde o começo do ano passado, 34 pessoas morreram de Aids na cidade. Foram mortes causadas por um vírus que parece adormecido há muitos anos, mas que ainda é motivo de um preconceito velado, o que dificulta tanto diagnóstico quanto tratamento. A diferença é que, de alguns poucos anos para cá, outro fator vem colaborando para que a infecção do HIV tome força: o não uso de preservativos aumenta a incidência de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs). Por consequência, as lesões genitais servem como porta de entrada para que aumentem os casos de infectados por Aids em todo o mundo.
Você não o vê, mas ele vê você
O vírus do HIV está na espreita. Estas 34 pessoas mortas em Passo Fundo desde 2016 somam-se a uma estatística muito maior que dimensiona a transmissão do vírus pelo mundo hoje: pelo menos 1 milhão de pessoas foram vítimas fatais da Aids no ano passado, enquanto 36,7 milhões ainda lidam com a doença. Este último dado é o mesmo número de pessoas mortas pelo vírus desde o seu descobrimento, em 1983. Em proporção, é como se toda a população dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Pernambuco fosse dizimada pela doença.
No Brasil, a estimativa é que 19 a cada 100 mil pessoas estejam infectadas pelo vírus. No RS a média é maior: 34 a cada 100 mil. Mas Passo Fundo passa à frente: 49 casos são notificados a cada 100 mil pessoas, o que nos coloca no 34º lugar entre as 100 cidades com maior incidência de Aids no país. No final de 2014, ocupávamos a 79ª posição, de acordo com o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde. O deslocamento no ranking não foi por acaso: por ano são 90 novos pacientes registrados no Serviço de Atendimento Especializado (SAE), setor público responsável pela distribuição dos medicamentos e atendimento aos infectados. Este valor, no entanto, tende a ser muito maior, já que muitas pessoas procuram por atendimento em outras cidades da região ou em consultórios privados, o que dificulta o mapeamento completo do percentual de casos.
“É um número muito expressivo que cresce cada vez mais”, explicou a enfermeira chefe do lugar, Seila de Abreu. O aumento nos últimos dois anos é visível nas suas estatísticas: ela apresenta o número de mortes por Aids na cidade: 23 em 2016 e 11 em 2017. “Vou te dizer, não sabemos mais o que fazer. Todos os dias chega alguém para fazer teste, aparece um caso novo. Este número [34 mortes desde o ano passado] parece insignificante, mas as pessoas precisam entender que pessoas morreram por uma doença que não se pode mais morrer. É uma doença que tem um tratamento eficaz com garantia de longevidade”, completou ela. Segundo a enfermeira, a maioria destas mortes ocorreu por ou por diagnóstico tardio ou por abandono do tratamento. “É muito preocupante. Não se usa mais o preservativo. Todos os dias chegam aqui pessoa que dizem ter múltiplos parceiros e que não usam camisinha. Estas exposições geralmente estão associadas ao uso de álcool ou drogas. E nesse círculo entram os adolescentes, que surgem aos montes com diagnóstico de Aids”.
Ter contraído a doença na adolescência foi a prova de fogo de Lúcia: aos 15 anos teve o primeiro namorado, que também tinha HIV. Sua história desde então envolve pelo menos 14 internações; três por meningite, uma por tuberculose e cinco pneumocistoses - uma pneumonia grave causada por fungo que ataca o sistema respiratório. “Naquela época não se tinha informação nenhuma. Ouvi falar da morte do Cazuza, então tinha a impressão que era doença de artista, pessoas diferentes de mim; eu me considerava comum. Como posso pegar Aids se só tive um namorado? Nos anos 1990, a gente considerava a Aids como uma doença dos gays, a peste cor de rosa. Nós, mulheres, nos achávamos invulneráveis”, lembra ela. Mas este pensamento logo se transformou: aos 15 anos, Lúcia viu amigos morrerem de Aids e recebeu a sentença de morte. “Quem tem Aids vai morrer, escutei. Eu já estava preparada. Na época só pensei em duas coisas: que não ia conseguir ser mãe, meu maior sonho, e que ia morrer sendo menor de idade. Foi uma frustração”, contou.
A incidência da Aids em adolescentes até chegou a ser controlada no fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, mas voltou a crescer. De 2006 a 2015, a taxa de detecção em jovens do sexo masculino de 15 a 19 anos quase triplicou: a cada 100 mil, sete passaram a conviver com o vírus. Dos jovens de 20 a 24 anos, os números são mais expressivos: a cada 100 mil habitantes, pelo menos 33 têm o vírus, enquanto a estimativa anterior mostrava pelo menos 16 a cada 100 mil. Se observarmos a comparação entre homens e mulheres, os índices são ainda mais preocupantes: em 2006, para cada uma mulher com o vírus havia 1,2 homem contaminado. Já em 2015, para cada mulher são três homens. Em Passo Fundo, a maior prevalência é em jovens do sexo masculino de 18 a 30 anos. Este contexto, no entanto, não é só preocupante no Brasil, mas também em todo o mundo. “Pelo o que dá para entender, esta geração de jovens não aprendeu com a geração anterior o que significa ter Aids”, disse em entrevista por telefone a diretora da Unaids Brasil, instituição da Organização das Nações Unidas (ONU) que levanta dados e busca a prevenção mundial da doença, Georgiana Braga-Orillard. Segundo ela, o problema é que existem falhas na prevenção destes jovens. “Temos que trabalhar muito mais próximos através de uma linguagem que eles compreendam e que tenha a capacidade de mudar a sua percepção e suas atitudes”, entenda ela.
A explosão de um torpedo
A relação entre doenças sexualmente transmissíveis e HIV não é mistério: uma lesão genital é, literalmente, tudo que o vírus precisa para se instalar no corpo humano e causar a Aids. Se aumenta o número de DSTs, consequentemente também cresce o número de pacientes infectados com HIV, já que hoje em dia o contágio se dá essencialmente via relação sexual. “Digo isso porque transmissão vertical [da mãe para o filho] não existe mais. No ano passado tivemos um caso em Passo Fundo, em uma média de 20 gestantes com HIV. E transmissão por acidente, com seringas ou objetos cortantes contaminados, também já é muito raro. Tivemos um caso em Erechim, no ano passado, que é considero algo absurdo, sem explicação. Então, sim, a forma de transmissão do HIV hoje é via sexual”, explicou a enfermeia Seila.
Por isso, ter uma DST hoje em dia precisa ser sinônimo de preocupação para prevenir a Aids. “A incidência de sífilis, gonorreira, HPV e DSTs em geral é muito preocupante. Quando se tem esse tipo de lesão genital, o paciente se infecta facilmente e é sempre mais difícil de tratar”, explicou a médica infectologista do SAE, Clarissa Oleksinski. A sífilis, por exemplo, é outra DST com número de casos que assusta em Passo Fundo: são 38 casos de sífilis congênita [passa de mãe para filho] a cada mil habitantes. No RS, são 11 a cada mil e, no Brasil, seis a cada mil. Outro dado é que em 2010 tínhamos 14 gestantes com sífilis na cidade; em 2016, o número subiu para 244. Na transmissão, os casos são ainda mais gritantes: em 2010, eram quatro casos de sífilis em Passo Fundo e, em 2016, o total pulou para 638 casos. Se somarmos todos os grupos, são mais de 1,1 mil pessoas com sífilis registradas em menos de cinco anos. Onde está o motivo para isso? A resposta é simples: as pessoas deixaram de usar camisinha.
E o não uso de preservativo não está só nos jovens. Ainda que a população mais afetada pela Aids seja a de homens de 18 a 30 anos, outro perfil vem causando preocupação: em 2015, o aumento de casos também se deu nas faixas de homens acima dos 50 anos e mulheres acima dos 55. Um número surpreendente, já que em 2006 a maior prevalência era em mulheres de 30 a 39 anos. Em 2014, uma pesquisa desenvolvida por acadêmica do curso de Serviço Social da UPF mostrou que a maioria dos idosos (85,3%) que têm vida sexual ativa não usa preservativo. A pesquisa conversou com 287 idosos da área de abrangência da Unidade Básica de Saúde Adirbal Corralo, do bairro Victor Issler. Destes, 14 disseram ser portadores do HIV - o que representa quase 5% da amostra. No material há o relato de uma enfermeira da UBS que orientou o trabalho. Segundo ela, a maior parte dos casos de HIV foram descobertos na própria unidade de saúde quando os idosos já eram considerados como integrantes da terceira idade.
“Nós vemos o uso de preservativo reduzido na grande maioria da população, tanto pelos jovens quanto pelos mais velhos, que acham que já passaram da fase de transmissão”, complementa a diretora da Unaids. E tudo isso porque hoje se pensa muito mais em populações de risco ao invés de comportamentos de risco; outro estigma que deve ser quebrado. “Não existem populações de risco. Na verdade, o risco é para todos. Temos que pensar em comportamentos de risco. Não usar camisinha é o mais importante deles”, completou Clarissa, a médica infectologista do SAE.
Uma nova - e eterna - ditadura
Ainda que a medicação para os pacientes com Aids tenha se desenvolvido muito ao longo do tempo, sua manutenção está longe de ser simples. O tratamento para cada pessoa é um combinado de, no mínimo, três remédios, como explica a médica infectologista do SAE. “Tentamos ao máximo individualizar o tratamento, já que cada paciente tem as suas características. O que não muda é que todos vão ter que tomar pelo menos essa combinação, que são os antirretrovirais”, começou. O Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza cerca de 15 drogas que podem ser combinadas de acordo com o contexto de cada pessoa. Todas elas são fornecidas gratuitamente em qualquer lugar do país, independente do local primário de consulta do paciente.
Ainda que os populares coqueteis tenham saído de moda há alguns anos, é bom lembrar que o tratamento não é simples: vem carregado de efeitos colaterais, devido a alta dosagem dos medicamentos. “Hoje o coquetel praticamente não existe mais. Se alguém entra no consultório hoje para o tratamento, vai tomar dois ou três comprimidos por dia - e não mais 10 ou 15 como era antigamente. Os efeitos colaterais acontecem sim, mas em menor grau. O mais comum é fortes náuseas, vômitos e diarreia, mas que tentamos ir controlando ao longo do tempo”, explica a médica. O tratamento nunca termina e precisa ser rigorosamente controlado diariamente, em horários determinados.
O Brasil é considerado mundialmente como um dos destaques na prevenção e tratamento do HIV. “O próprio sistema de saúde oferece e prevenção, o medicamento e a testagem de forma gratuita. Muitos países não têm dinheiro ou não pagam por esse serviço. A diferença do Brasil é que este acesso é assegurado por lei, então é uma política de Estado e não de governo, o que se o torna diferente de todos os países do mundo”, explica a diretora da Unaids, Georgiana.
Para o resto da vida, o extremo
O HIV nos vê, nós é que não estamos atentos a ele. Depois de ser infectada, Lúcia também passou a ver. Viu o massacre da comunidade gay, viu a primeira filha morrer de Aids aos três meses de idade, sem imunidade nenhuma. Viu a mãe ser demitida por ter filha com HIV, viu enfermarias de hospitais lotadas por uma doença que deixou equipes da área da saúde no escuro por muitos e muitos anos. Mas também viu sua segunda filha nascer sem o vírus depois de pesquisar muito e se encher de esperança, aos 23 anos de idade. Viu muitos e muitos lugares deste Brasil, e em cada lugar deixou um pouco de si e fez grandes amigos, com quem sempre conversa.
Mesmo depois de 28 anos de doença, o HIV nunca impediu Lúcia de fazer nada. Sua luta, travada ainda quando adolescente, continua até hoje. No SAE, empresta seu tempo, ombro e conhecimento às pessoas que ainda não conseguem processar em si a existência do vírus. “O HIV não foi um empecilho para mim, porque me cuidei a vida toda”, conta ela, que desde o começo da conversa demonstra ter domínio completo do assunto. “Fui mãe, esposa, sou profissional. O HIV nunca foi fator limitante para ser feliz”. A torcida é que, em um dia breve, seu sonho possa ser realizado. “Até o próximo mundial, talvez eu consiga ser autônoma ou ter um emprego que eu não dependa de julgamento. Se meu chefe quiser me despedir por ter HIV, tudo bem; não quero ter que me preocupar. Quero achar algo onde eu possa mostrar meu rosto a vontade. Quero poder falar sobre isso abertamente e fazer algo pelo mundo. Teria tanto para contar... já pensou o baque que seria nessa cidade? A conscientização que isso ia gerar?”.
Entenda
Todas as chamadas desta reportagem foram inspiradas na música ‘O gosto do azedo’, interpretada pela cantora Rita Lee. A canção, composta por Beto Lee em 1998, trata da dificuldade de socialização de pessoas soropositivas na época. A música ganhou o Prêmio Sheila Cortopassi, oferecido pela Associação para Prevenção e Tratamento da Aids.
O HIV EM PASSO FUNDO
Total de casos desde 1980: 1,4 mil
Total de óbitos por Aids: 398
Exposição ao vírus:
1º Relação sexual heterossexual
2º Infecção por drogas injetáveis
3º Relação sexual homossexual
4º Transmissão vertical (da mãe para o filho)