Já somos uma sociedade com uso exacerbado de tecnologia: utilizamos em casa, no trabalho e também para diversão. Mas como identificar se esse uso se tornou patológico? O psiquiatra do Instituto de Psiquiatria e Psicoterapia (IPP), Dr. José Ribamar Saraiva Junior, explica que pesquisas na área descrevem muitas semelhanças entre os viciados em jogos na internet com usuários de substâncias psicoativas, incluindo aspectos de tolerância, abstinência e repetidas tentativas fracassadas de reduzir ou abandonar o uso e prejuízo no funcionamento normal. Na entrevista abaixo ele descreve as características do vício em jogos e internet e também fala dos perigos e da conduta dos pais no caso de adolescentes com a patologia.
Medicina & Saúde: Quais as características de uma pessoa que é viciada em videogame ou é dependente de tecnologias?
José Ribamar Saraiva Júnior: Este tema é relativamente recente na literatura científica. Na próxima versão da Classificação Internacional de Doença (CID-11) deverá ser contemplado este tema para Desordem do Jogo. Já o grupo de trabalho do Manual do Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais na 5ª Edição (DSM5) examinou mais de 240 artigos e encontrou algumas semelhanças comportamentais do jogo pela internet com o transtorno do jogo e os transtornos por uso de substâncias. O quadro clínico pode ser caracterizado por pessoas que começam a apresentar uma preocupação com jogos pela internet, a ponto do jogo se tornar a principal atividade de sua vida. Somente os jogos pela internet que não são de azar estão inclusos neste transtorno. O uso da internet para atividades requeridas em um negócio ou profissão não está incluso; nem é pretendido que o transtorno inclua outro uso recreacional ou social da internet. Igualmente, os sites de sexo da internet estão excluídos.
M&S: O indivíduo viciado passa por crises de abstinência?
JRS: Quando o jogo é retirado inicia um quadro de abstinência caracterizado por sintomas de irritabilidade, ansiedade ou tristeza, geralmente são sintomas psicológicos; com o passar do tempo vão apresentando tolerância – a necessidade de passar quantidades crescentes de tempo envolvido nos jogos pela internet. Apesar das repetidas tentativas de controlar a participação nos jogos pela internet, a perda de interesse por passatempos e divertimentos anteriores em consequência dos, e com a exceção dos jogos pela internet, se caracterizam em mais um ponto importante, o que faz com que o indivíduo e sua família fracassem diante da tentativa de controle. O indivíduo pode começar a enganar os membros da família, terapeutas ou outros em relação à quantidade do jogo pela internet e passam a utilizar o jogo para evitar ou aliviar um humor negativo (p. ex., sentimentos de desamparo, culpa, ansiedade).E, por fim, coloca em risco ou perde um relacionamento, emprego ou oportunidade educacional ou de carreira significativa devido à participação em jogos pela internet.
M&S: Essas patologias são recentes? Quando iniciaram os estudos sobre estes problemas?
JRS: Os primeiros estudos datam da década de 90, mais precisamente em 1996, realizado por Young e apresentado na Associação Psicológica Americana. A partir de então vários países como a Rússia, China, Taiwan, Reino Unido e EUA se interessaram pelo tema e as pesquisas se disseminaram pelo mundo. Em relação à epidemiologia dos estudos sobre dependência da Internet, os resultados são divergentes: 0,6% (China), 1,8% (Suécia) a 4,6% (Alemanha), possivelmente devido a diferentes avaliações e grupos etários que foram investigados.
M&S: O problema atinge mais homens ou mulheres?
JRS: Os estudos não mostram diferença significativa entre gêneros, mas alguns dados alertam para os usuários jovens, até os 24 anos de idade. Estudos na Coreia, EUA, Finlândia e China, apontam prevalências de dependência de internet que variam de 6 a 13%, e o mais alarmante é que mais de 18% destes jovens são possíveis dependentes, revela estudo Coreano de Whang e colaboradores.
M&S: Existe ligação entre o modo de vida das famílias modernas com o aumento dessas patologias?
JRS: A relação do desenvolvimento da dependência de internet e de jogos pela internet é multifatorial, ou seja, não existe apenas um fator que leve ao desenvolvimento da patologia. O que sabe que um padrão desadaptativo de enfrentamento das situações do cotidiano levam as pessoas a terem respostas menos funcionais buscando jogos pela internet ou suas redes sociais virtuais para aliviarem algumas angústias. Várias modelos já foram estudos e facilitam a compreensão clínica do transtorno. O modelo cognitivo-comportamental é um deles, fala que a dependência de internet e tecnologias apresentam elementos centrais que são comuns na dependência química, como foi relatado anteriormente. E tem sido abordado amplamente pela terapia cognitivo-comportamental. Outros modelos como o neuropsicológico, o da teoria da compensação e os fatores situacionais vem colaborar com a ideia multifatorial do transtorno, exigindo uma abordagem multidisciplinar. O uso racional da tecnologia, ferramentas de controle de tempo de internet, saber o que o filho está acessando e principalmente conversar com o filho se constituem medidas preventivas importantes. No caso da suspeita ou da dependência já instalada a procura precoce pelo profissional especializado é de suma importância, melhorando o prognóstico da doença.
M&S: Qual o tratamento indicado para esses vícios?
JRS: Como grande parte do padrão de uso da internet não está em plena consciência, fica automatizado, nos levando a um grau significativo de distorção e dissociação do tempo que ficamos conectados. São três fatores que influenciam na dependência de internet: acesso e disponibilidade, poder arcar com os custos e anonimidade. Em termo de psicoterapia, a Terapia Cognitiva Comportamental (TCC) tem apresentado mais evidencias cientificas de eficácia, o tratamento é focado em motivar o paciente a diminuir o uso, aumentar a capacidade de controlar o uso adequado, aumentar as atividades do mundo real, melhora dos relacionamentos interpessoal e melhora dos relacionamentos afetivos. Associado a esta técnica, pode-se realizar a Terapia Familiar Sistêmica, programa de 12 passos para dependência de internet e também o uso de medicamentos específicos. Importante salientar a necessidade de uma rede de apoio composta da família e de vários profissionais.
M&S: A tragédia na escola Raul Brasil, em Suzano, reacendeu a polêmica sobre a influência de jogos violentos em crianças e adolescentes. Esses jogos realmente são perigosos?
JRS: A adolescência é um momento delicado, todos que já passaram por ela sabem e muitos até “esqueceram” parte dela devido a grande tensão que esta fase impõe ao jovem e à família. É comum observarmos pais que ficam abalados com o distanciamento que o filho adolescente apresenta neste momento, e é aí que mora o perigo. O cérebro adolescente está com uma descompensação de vários neurotransmissores, isto explica porque o adolescente, de uma forma geral, fica desorganizado, impulsivo, isolado, rebelde e necessita se afastar da família para solidificar sua identidade. Alguns grupos virtuais perversos estão se aproveitando deste momento de impulsividade-fragilidade e levando muitos adolescentes a automutilação e a comportamentos violentos, tanto a si como a terceiros.
Neste momento ele recorre a um grupo, que pode ser virtual. Neste grupo, se sentindo compreendido, geralmente segue seu ritmo e passa a adotar o comportamento e funcionamento psicológico deste grupo. Daí a importância de conhecermos os amigos dos nossos filhos e acompanharmos de perto esta fase do desenvolvimento, além de explicar que certas atividades não podem ter correspondência com o mundo real. As pesquisas sobre jogo violentos evidenciou que as pessoas expostas a estes jogos alteram o funcionamento fisiológico do nosso corpo. Os resultados evidenciaram que jogar no computador exerce um impacto inicial na frequência cardíaca, com tendência a diminuir ao fim de certo tempo de habituação. Em relação aos efeitos da violência, verificou-se que jogos com conteúdos violentos podem aumentar em curto prazo pensamentos e sentimentos de hostilidade. Porém não se registaram diferenças ao nível da ansiedade entre os dois grupos, mas verificou-se que maiores índices de ansiedade estavam associados a uma menor frequência de jogo e de tempo dispendido em cada sessão.