Bruna Scheifler | Especial ON
Profissionais de saúde da linha de frente do enfrentamento ao coronavírus começaram a receber a vacina no final de janeiro. A pequena dose é a fonte de esperança para quem convive diariamente com o vírus e suas consequências. Uma fisioterapeuta, duas enfermeiras e uma técnica de enfermagem dos principais hospitais de Passo Fundo contam suas experiências e o sentimento após a vacinação.
Começo da pandemia
“A gente virou linha de frente da noite pro dia, fomos treinados, capacitados e teve todo o suporte de EPIs, mas era bem difícil aquele dia-a-dia maçante, as perdas de pacientes, a gente teve colegas internados, perdeu colegas, o isolamento em relação à família, isso era o que a gente mais sofria”, lembra a enfermeira Márcia Leal Freire Rosa, 42 anos, que trabalha no Hospital São Vicente de Paulo (HSVP).
A reorganização dos setores foi uma das funções da também enfermeira do HSVP Michele da Silva Lara, 45 anos, gestora de área de todos os postos de internação SUS. “Foi bem desafiador, muitas vezes nós fomos chamados em casa para vir para o hospital em dias de folga, para poder dar esse suporte”, conta. Mesmo sendo gestora, conforme o vírus avançava dentro das equipes, afastando colegas, ela precisou atuar também nos postos Covid. “Foi bem desgastante, foi bem estressante pelo fato de a gente estar envolvido com os pacientes. A diferença nossa da sociedade é que todos procuram evitar o contato com as pessoas que são suspeitas, confirmadas, e nós, enquanto profissionais da saúde, realizamos o fluxo contrário, nós precisamos ir até eles, precisamos recebê-los”.
Misto de emoções
Em outro setor do mesmo hospital, a técnica de enfermagem Katiani Morgan, 38 anos, lembra do começo da pandemia como um misto de sentimentos. “Medo, insegurança, mas gratidão também de saber que ia poder estar aqui ajudando tantas pessoas, tantas famílias, porque são histórias. Às vezes no mesmo setor a gente tem mais de um familiar internado, tem um casal, os filhos, alguns com desfecho melhor, às vezes nem tanto. E é muito complicado essa questão da perda. Tu está num quarto cuidando do pai, ele está bem, mas tu sabe que o filho não está tão bem e que infelizmente se despediu. Chegava dias que tu pensava: meus Deus, será que não vai acabar, até quando? ”, relembra Katiani.
Isolamento das famílias
A pior parte, no entanto, para essas profissionais era o isolamento e distância dos próprios familiares. Pais e filhos que precisaram abrir mão de visitas e abraços. “Emocionalmente pesa, psicologicamente pesa para nós também, pelo fato de que a gente se preocupa muito com a família. Muitas vezes que eu entrava em contato com pacientes confirmados, eu procurava não ter contato com a minha filha. A questão do abraço e do afeto, inúmeras vezes a gente teve que deixar”, relata Michele.
As duas colegas com pais idosos, precisaram abrir mão desse contato direto por meses. “A exposição que a gente tinha era grande, então o isolamento da família era muito desgastante para nós. A pior parte”, conta Márcia. “Eu tenho uma filha pequena em casa, não entendia muito bem, fiquei seis meses sem ver meus pais porque eram grupo de risco, sem ver, sem chegar perto deles mesmo. Foi muito desgastante”, ressalta Katiani.
Exaustão
As perdas constantes, a paramentação e as horas de plantão levaram os profissionais ao cansaço e à exaustão. “A gente chegou a um período de exaustão, do corpo, psicológico, o isolamento da família, não poder sentar, abraçar, conversar, estar perto de quem tu ama, isso desgasta bastante, até pela falta de funcionário. A gente era importante ali, então tinha que estar presente o tempo inteiro”, destaca Márcia. Os profissionais, ao longo da pandemia, tiveram que fazer escolhas e viver situações complicadas, às quais não estavam acostumados antes de março de 2020. "A gente se viu em situações difíceis, de intubação, perdas e perdas e perdas, muitas mortes, isso mexe com a cabeça de qualquer um. A gente se sentia impotente, porque perdia muitos pacientes. Perdas como eu nunca tinha visto antes”, diz a enfermeira Márcia.
O mesmo sentimento de impotência é compartilhado por Katiani. “Às vezes dava aquela sensação: meu Deus, será que eu não poderia ter feito mais? Mas não era uma questão de poder ou não fazer mais. É muito rosto conhecido indo embora, dos pacientes, de amigos e familiares”, lembra a técnica.
Além disso, os profissionais convivem também com os parentes dos pacientes. “Muitos familiares ligando, sem poder ver o paciente, a gente tava ali no meio, entre os pacientes se despedindo da vida e o familiar sem poder ver ele, isso é muito difícil pra gente, para eles nem se fala. É uma guerra mesmo, eu me senti em campo de batalha porque todo dia era um leão que tinha que matar”, destaca Márcia, enfatizando que espera nunca reviver essa situação.
"O abraço que acalenta tanto a gente, não tinha"
Para agravar o quadro, a pandemia não termina quando os profissionais saem do hospital. “A gente saía daqui e seguia a pandemia lá fora, não tinha o suporte que precisava porque não podia ter contato com a família, o abraço que acalenta tanto a gente, não tinha”, ressalta Márcia.
A pandemia, que a população esperava que terminasse em poucos meses, está durando muito mais do que o esperado. No final de dezembro, a palavra usada pela fisioterapeuta Débora D’Agostini Jorge Lisboa, 39 anos, para descrever o sentimento da equipe era cansaço. “Foi um desafio para nós e continua sendo um desafio, porque a gente achava que isso iria acabar, a gente tinha um prazo em que esperava que isso terminasse, mas esse término não chegou e não está em vias de terminar tão cedo”, dizia a Coordenadora do Serviço de Fisioterapia, que trabalha no Hospital de Clínicas de Passo Fundo.
Apesar da exaustão, alguns fatores ajudam a passar por esse momento. “A equipe é bem forte, tivemos todo o apoio do hospital, sempre presente, de uma psicóloga também, porque nós cuidávamos dos outros, mas precisávamos de alguém que cuidasse de nós também”, destaca a enfermeira Márcia.
Família
Junto dos pacientes e dos profissionais de saúde, as famílias dos internados sofrem e buscam por notícias. Nos postos, os pacientes ainda podem contar com um familiar, no entanto, caso o paciente vá para a UTI, não pode mais receber visitas. “A psicóloga fazia uma videochamada enquanto os pacientes estavam acordados com a família, para eles se verem, conseguirem conversar, mas infelizmente depois que eram intubados já não tinha mais essa vídeo chamada. Muitas vezes oferecemos o próprio celular, porque o paciente ia ser intubado e a psicóloga não estava ali naquele momento”, relata a enfermeira da CTI Márcia.
Esse cuidado é recompensado pelos familiares com mais cuidado. “A gente tem vínculo com os familiares até hoje. Recebemos presentes, mensagens de carinho, de agradecimento, mesmo daqueles que perderam familiares conosco. A gente se sente peça importante na vida deles, porque fomos o conforto para eles e para o paciente enquanto ele estava naquele momento”, diz Márcia.
O adeus
Uma situação à qual as enfermeiras não estavam acostumadas é a preparação dos corpos após a morte, função que normalmente é desempenhada pelas funerárias. O momento é descrito com tristeza por elas. “Infelizmente acontecia, então a gente tinha qe ser forte porque não era nada fácil fazer aquele preparo. Eu tinha o sentimento: você não está sozinho, você vai, mas vai com minha oração. Eu me senti de alguma forma confortada. A tua oração, esse “tô aqui”, era a última coisa”, conta emocionada Katiani.
"Saber que a última pessoa a ter contato com aquele paciente éramos nós da equipe"
“Foi mais uma situação nova e desgastante para nós, aquela despedida, aquele preparo do corpo, em saber que a última pessoa a ter contato com aquela paciente éramos nós da equipe, não podia ser um familiar”, conta Márcia, em referência ao fato de vítimas da Covid-19 serem enterradas com caixão fechado.
Contaminação
O medo da contaminação tornava a rotina mais cansativa, impedindo intervalos e até idas ao banheiro devido ao medo de se contaminar no momento de retirar os equipamentos de proteção. “Para mim era melhor ficar com aquela roupa até o final do turno, tirar uma vez só e já ir para casa tomar meu banho”, lembra Márcia.
O Equipamento de Proteção Individual (EPI) também torna a rotina mais pesada. “Isso ajuda a se tornar cansativo, é calor, é desgastante, muitas vezes os EPIs machucam, e às vezes tu fica ali seis, às vezes dez horas, tu não vai no banheiro, tu não toma uma água porque o medo de tirar e se contaminar é muito grande”, diz Katiani.
Mesmo assim, o vírus ultrapassa barreiras. Katiani foi uma das primeiras a testar positivo. Ela enfrentou ainda o medo do desconhecido, além da intensificação do isolamento. “Ela tinha três aninhos, a minha menininha, como ela ia entender? Muita coisa ela entendeu, mas não é tão fácil. Eu ficava isolada no quarto, mas tinha momentos que não tinha o que fazer, tinha que sair do quarto e, claro não beijava e abraçava, não tinha aquele contato de mãe e filha, mas só para ela me ver e saber que eu tava ali. Com o passar dos dias ela foi entendendo. Hoje, é ela quem diz, quando eu chego em casa: não posso tocar em você, porque você precisa tomar primeiro um banho. Ela entende mais que muito adulto, ela sabe que tem que usar a máscara, que ela tem que manter distância das pessoas”, conta Katiani.
Márcia contraiu o coronavírus depois de sete meses na linha de frente e teve apenas sintomas leves, assim como as outras colegas. “Mas claro que o medo do amanhã é bem complicado, porque tu nunca sabe como vai reagir. Eu sou do grupo de risco porque eu sou pré-diabética e eu segui firme ali na batalha, então passa muita coisa na cabeça da gente. A minha filha dizia: ‘mãe será que tu vai morrer?’ Porque na TV tu só vê morte, coronavírus é associado à morte”, relembra a enfermeira.
Vacinação
Quando viu a enfermeira Mônica Calazans, a primeira pessoa a ser vacinada no Brasil, recebendo o imunizante, Katiani chorou. “Me deu uma sensação assim: agora vai dar tudo certo. É alegria, gratidão, mas também queria que a minha família e que todo mundo pudesse ser vacinado, por mais que eu me vacinar seja uma forma de proteger a minha família. É uma forma de proteger os outros, a família e os amigos, por mais que a gente não tenha aquele contato com muitas pessoas” afirma a técnica.
A luz, a esperança, no final do túnel é uma sensação compartilhada pelas profissionais, mesmo de setores e hospitais diferentes. “Pra mim a vacina foi uma luz no fim do túnel, um sinal de esperança, um conforto”, conta Márcia, que se vacinou já no segundo dia por trabalhar na CTI. A vacina foi o momento mais aguardado do ano todo e um presente para ela. “Na hora eu até tive vontade de chorar porque com a exaustão que a gente vinha vindo, aquilo ali foi um up pra gente, foi um conforto, uma sensação de segurança que há muito tempo a gente não tinha”.
Apesar da felicidade e gratidão, elas continuam se sentindo impotentes, desta vez por serem praticamente as únicas a serem vacinadas. “Tristeza pelas pessoas que a gente convive e ama, que não tem a mesma oportunidade. Mas entendemos que pelo fato de estarmos todos os dias trabalhando nisso é necessário a proteção. Mas vai chegar para todos, essa é a nossa esperança, que tudo possa mudar a partir de agora. É ver realmente a luz no fim do túnel e pensar: meu Deus, acho que agora tá começando a ir para o final de tudo isso e, talvez, um dia a gente vai poder voltar a ter uma vida normal, uma vida social, com família, amigos, onde não precise talvez usar uma máscara”, fala com esperança Michele.
“Ainda estamos todos exaustos porque não tivemos trégua dessa pandemia"
Poucos dias depois de receber a primeira dose de vacina contra o coronavírus, o cansaço permanece, mas esperança surge no vocabulário da fisioterapeuta Débora. “Ainda estamos todos exaustos porque não tivemos trégua dessa pandemia, mas depois da vacina é um misto de sentimentos. O principal deles é o de esperança de que as coisas melhorem, que tudo volte ao normal, que tudo isso acabe”, relata a fisioterapeuta.
A vacina não irá resolver completamente a situação, afinal são poucas doses.. Até a quinta-feira (04), mais de 5,8 milprofissionais de saúde haviam sido vacinados em Passo Fundo. O número representa 48,6% da estimativa de 12 mil profissionais da área no município. Ainda assim, o imunizante representa um alívio. “Depois da vacinação acho que todo mundo parece estar respirando mais aliviado”, conta Débora.
Apelo
A sensação de vida nova, para Katiani, não afasta a preocupação. “Que as pessoas continuem se conscientizando, porque só a vacina não pode fazer milagre”, destaca a técnica. O comportamento social inconsequente chega a desmotivar os profissionais de saúde, que apelam para que a população mantenha os cuidados. “O vírus segue circulando, os hospitais estão sobrecarregados, nós estamos exaustos. A gente pede que a população siga firme nos cuidados para também nos ajudar”, ressalta Márcia.
Durante os turnos, em meio a pacientes sofrendo com a doença e do trabalho constante, algumas cenas indignavam. “Tinha uma janelinha minúscula no posto 10, a gente olhava para fora às vezes no domingo, nós ali na luta e olhava para fora para aquela praça cheia, as pessoas sem máscaras, crianças, idosos. Eu tinha vontade de gritar da janela: pessoal, se conscientizem, a coisa não é brincadeira, é triste”, lembra Katiani.
"Eu acho que as pessoas precisam se conscientizar"
O sentimento ao ver o descuido é de revolta. “A gente percebe bares lotados, restaurantes sem os cuidados necessários de distanciamento, isso revolta a gente porque sabemos o que é conviver com isso diariamente e parece que as pessoas não entendem e acham que é brincadeira. Eu acho que as pessoas precisam se conscientizar porque realmente é algo que não tem controle ainda”, diz Michele, lembrando que existem chances de contaminação mesmo após a vacinação.