Uma nova vida marcada pela Covid-19

A cada passo, as síndromes pós-covid afetam a rotina de quem foi contaminado pela doença

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O cuidado com a saúde se tornou um hábito na vida pós-covid de Anaurides. (Foto: Isabel Gewehr)O cuidado com a saúde se tornou um hábito na vida pós-covid de Anaurides. (Foto: Isabel Gewehr)
O cuidado com a saúde se tornou um hábito na vida pós-covid de Anaurides. (Foto: Isabel Gewehr)
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Embalado pelos versos da canção“Guri”, imortalizada na voz de César Passarinho, Anaurides Monteiro foi recebido em sua casa pelo filho Anderson depois de ficar um mês internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP). No início de 2021, o aposentado de 69 anos, contraiu a Covid-19, o que o levou a três meses intensos de fisioterapia e a uma nova rotina onde o cansaço e a falta de memória se tornaram suas companheiras. As síndromes pós-covid de Anaurides afetam a vida de milhares de pessoas desde o início da pandemia e chamam a atenção de agentes que trabalham em busca da melhora da qualidade de vida de quem foi impactado pela Covid-19. 


Busca Ativa pós-covid no município 

Em Passo Fundo, mesmo após a desaceleração de casos e o alto índice de pessoas vacinadas contra a doença, permanece em atividade o programa “Busca Ativa / Ambulatório Pós Covid-19”. Desde o início de 2021, o Busca Ativa faz a triagem de pacientes que internaram na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) dos hospitais do município, sinalizando se algum tipo de sequela se desenvolveu e que tratamento e profissionais tal síndrome requeriu. A Secretaria Municipal de Saúde conseguiu mapear pacientes do período que enquadra o início da pandemia até o primeiro semestre de 2021. Destes, 374 concordaram em passar pela avaliação e 65 precisaram de algum atendimento. 

Entre os atendimentos, os de maior destaque são os psicológicos, com 41 pacientes. Na sequência, 37 pacientes recorreram à fisioterapia e 12 a nutricionistas. Somente dois necessitaram de especialistas, sendo um neurologista e o outro pneumologista, o que sinalizou a prevalência de uma equipe multiprofissional, como explicou a secretária de Saúde de Passo Fundo, Cristine Pilati. “Nós notamos principalmente sinais de depressão e transtornos de ansiedade. Depois problemas de fisioterapia, com a reabilitação respiratória e motora visto que muitos pacientes estavam acamados, em cadeira de rodas e a deficiência nutricional”, esclareceu, acrescentando que dentro desses 374 pacientes, seis ainda se encontravam em uso de oxigênio domiciliar no pós-covid.

Outro dado que chamou a atenção e trouxe preocupação, foi referente àqueles que desenvolveram sequelas provavelmente definitivas, visto que três estão em cadeiras de rodas e três ficaram acamados. Cristine ainda ressalta que 19 dos pacientes analisados vieram a óbito no pós-covid.

Com esses resultados em mãos e finalizando neste momento o balanço do segundo semestre de 2021, a secretaria Cristine pontua que o Busca Ativa é uma tentativa de solução para que, quem permaneceu com síndromes pós-covid, tenha um atendimento de qualidade, com os recursos para a criação de Ambulatórios Pós-Covid otimizados. “Houve agora a aprovação de recurso federal para ambulatórios pós-covid. Como observamos no programa que o principal é a equipe multi, nós iremos usar o recurso para reforçar as equipes multiprofissionais e inclusive em equipamentos”, declarou a secretária. 


Síndrome Pós-Covid

Os problemas que 374 passo-fundenses enfrentaram e muitos continuam a ter em sua rotina são comumente chamados por “sequelas pós Covid-19”. No entanto, segundo a Coordenadora das Unidades de Tratamento Intensivo de Doenças Infecciosas do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), Sabrina Frighetto Henrich, o mais adequado é nomeá-las como uma Síndrome Pós-Covid. 

O termo sequela é entendido como algo não reversível e um paciente que manifestou determinada síndrome dentro de um período de seis meses ainda pode ter um quadro reversível. “A partir desses dois anos, nós vamos considerar sequela, mas teremos que avaliar muito bem, porque esses pacientes que vão até seis meses pós-covid podem ter uma síndrome reversível. Então ainda faltam estudos para nos dizer o que realmente é sequela e o que vamos conseguir reverter de tudo isso”, pontuou.

Nesse sentido, Sabrina explica que inicialmente é sinalizada a fase aguda da doença, que se desenvolve em duas a quatro semanas. Depois desses 30 dias, de internação ou de permanência em âmbito domiciliar, ocorre a persistência dos sintomas da Covid-19 que podem levar a um quadro de doença pós-aguda. Esses casos têm a possibilidade de evoluir para um quadro crônico, onde são considerados pacientes que estão há mais de doze semanas manifestando sintomas e que poderiam ter essa alteração perdurando por mais de seis meses. “Nesse contexto, entre as doze semanas e os seis meses que consideramos um paciente com um quadro crônico pós-covid, que seria o que chamamos de síndrome pós-covid”, destacou.


A covid-19 de Tio Monteiro

A covid-19 de Anaurides Monteiro, conhecido carinhosamente como “Tio Monteiro” pelos amigos e familiares, veio após a internação para uma cirurgia de apendicite. A ida para a UTI, seguida da intubação, deixou toda a família em alerta, mas depois de um mês, ele finalmente saiu do hospital, com cerca de 30kg a menos e sem forças para realizar atividades básicas do dia-a-dia.

Logo após a volta para casa, seguiram-se 95 dias dedicados a exercícios na fisioterapia, realizada duas vezes por semana para fortalecer sua musculatura e recuperar parte da autonomia que tinha em sua antiga rotina. Liberado da fisioterapia, desde então ele adotou o hábito de ir à academia três vezes por semana.

Nesse meio tempo, mais de 15kg foram recuperados, mas a respiração profunda e sem falhas não tiveram mais retorno, já que Anaurides perdeu cerca de 80% da funcionalidade de seu pulmão. Isso se soma às fadigas, falhas na coordenação motora e perdas de memória, como o nome de pessoas que conhece há anos. “Tô falando com a pessoa e o nome não me vem à cabeça. Sabe, eu tenho que esperar um pouco para depois vir o nome e eu não tinha isso antes”, contou.


Os empecilhos na rotina pós-covid

Os percalços na rotina de Anaurides são encontrados em grande parte dos pacientes pós-covid, sendo a fadiga (58%) e a dor de cabeça (44%) os principais sintomas, seguido pela falta de atenção (27%), a queda de cabelo (25%), a falta de ar (24%), a tosse (19%) e a perda de memória (16%). 

O Coordenador das Unidades de Atendimento ao Covid-19 do Hospital de Clínicas, Gustavo Picolotto, explica que os pacientes que tiveram a doença mais branda podem vir a desenvolver sintomas como fraqueza e fadiga, que perduram por alguns meses e são as síndromes mais comuns, junto a perda de paladar e olfato. O cansaço, destacou o médico, vem principalmente no anoitecer e a noite pelo esforço físico exigido durante o dia.

No entanto, aqueles que desenvolveram a Covid-19 de forma moderada a grave, com necessidade de internação na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), acabam por carregar limitações mais intensas ao ponto de se tornarem doentes críticos crônicos. Sabrina Frighetto Henrich esclarece que há um declínio na qualidade de vida desses pacientes. “Ele se torna um doente crítico crônico. Esse é o paciente que está na UTI e se torna um paciente crônico, que saiu da doença crítica e ficou com as sequelas da doença”, esclareceu. 

Assim, soma-se a síndrome pós-covid a uma degeneração neurológica e muscular, que traz dores devido a perda de massa muscular, tecido adiposo e a própria sustentação depois do paciente ter sido internado na UTI. “A sensação de falta de ar, cansaço. Mais limitações nas suas atividades, dores de cabeça e corpo. Outros apresentam dores nas costas súbitas e da mesma forma que inicia, já melhora e isso fica intercalando nos dias”, exemplificou Gustavo.


A perda do fôlego 

Apesar de representar uma porcentagem pequena, as síndromes mais graves são as relacionadas às lesões no pulmão, como os casos de fibrose pulmonar após internação por Covid-19. Alguns pacientes, ainda durante a internação, acabam por desenvolver e permanecer com um quadro de embolia pulmonar, o que se torna debilitante quando ela é crônica. “Isso leva os pacientes a terem mais falta de ar, cansaço, alterações cardiológicas e que, por vezes, precisam usar para o resto da vida um anticoagulante para afinar o sangue”, alertou Sabrina Henrichos. Outro ponto, é uma asma pós-covid que se instala em um período transitório quando os brônquios ficam mais inflamados e requer o uso de inalatórios, medicação e a fisioterapia. 


O medo como parte do dia-a-dia

Para além das limitações físicas, muitos pacientes enfrentam síndromes relacionadas ao sistema nervoso central. De acordo com Gustavo Picolotto, cerca de 12% dos pacientes podem vir a ter transtornos de ansiedade e depressão após a Covid-19. Muitos apresentam quadros de ansiedade onde tem o medo da morte e o medo de ter que passar por determinadas situações novamente, como a falta de ar. “Por vezes, ficam deprimidos por não conseguirem voltar ou se encaixar em suas vidas anteriores, ao que faziam antes da doença. Até ao seu trabalho”, esclareceu Sabrina. Esses pacientes recorrem ao uso de medicamentos para reduzir os sintomas dos transtornos. 

Essa ansiedade vem acompanhada dos distúrbios de sono, outro ponto destacado por Gustavo. “Muitos desenvolvem sintomas de apneia do sono, tem desregulação do sono, além da insônia”, apontou, acrescentando que muitos evoluem para uma privação do sono e necessitam recorrer a medicamentos e a terapia cognitiva comportamental para melhorar a qualidade do sono.


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