A busca por oportunidade de trabalho é um dos motivos pelos quais, todos os anos, centenas de imigrantes deixam para trás o país onde nasceram e lutam para construir uma nova vida em cidades da região Norte do Rio Grande do Sul.
A consolidação de melhores condições de vida para estrangeiros vindos de países como Senegal, Haiti e Venezuela, no entanto, encontra barreiras que incluem até mesmo o acesso ao sistema público de saúde. É por isso que, desde 2017, a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) mantém em Passo Fundo o Ambulatório de Acolhimento em Saúde do Imigrante. O espaço, localizado na antiga sede do quartel, busca desburocratizar o atendimento e promover cuidados que levem em consideração as particularidades culturais e religiosas de cada um dos povos que vivem no município.
Conforme explica o coordenador acadêmico e professor do curso de Medicina da UFFS, Leandro Tuzzin, à época da criação do projeto, um levantamento realizado pela própria instituição apontou que cerca de 800 imigrantes viviam em Passo Fundo. Na região, o número passava de três mil. A maioria deles, há anos, não recebia atendimento médico. “Aos poucos, grupos e lideranças de imigrantes, principalmente mulçumanos, começaram a procurar a nossa instituição relatando determinada dificuldade de atendimento pela questão da religião. Esses primeiros contatos ensejaram uma análise mais profunda da questão da saúde para esses povos”, resgata.
Para os mais vulneráveis, a tendência era chegar ao ponto de ficar muito doente e então ser atendido na emergência.
Insuficiência de documentos e falta de domínio do idioma dificultam o acesso à saúde pública
Os gargalos no acolhimento de imigrantes, segundo o professor, dizem respeito, principalmente, à estrutura regular de saúde do país. O primeiro obstáculo, na maioria das vezes, é a insuficiência dos documentos exigidos para o atendimento, como o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS), que, por sua vez, para ser emitido, requer a apresentação de RG, CPF e comprovante de residência. “Sabemos que muitos desses imigrantes não têm nada disso. A negligência começa aí. Para os mais vulneráveis, a tendência era chegar ao ponto de ficar muito doente e então ser atendido na emergência. Esse foi o mote de criação do ambulatório: a não capacidade do sistema regular em absorver essas demandas”.
Obstáculos recorrentes no país estão relacionados, ainda, à falta de domínio do idioma local e questões ligadas à cultura e religião dos imigrantes, que são em sua maioria mulçumanos, praticantes do islamismo. O professor observa que, no caso das mulheres, era comum que elas evitassem buscar atendimento médico nas Unidades Básicas de Saúde, mesmo possuindo todos os documentos necessários, porque temiam ser atendidas por profissionais homens.
Outra grande reclamação relatada pelos imigrantes mulçumanos, conforme cita o professor, era a impossibilidade de conseguir o procedimento cirúrgico de circuncisão através do sistema público de saúde. Isto porque, embora no Islã seja um costume histórico fazer a circuncisão ainda na infância, no Brasil, o procedimento é considerado eletivo e acaba preterido em meio às demais demandas de saúde, fazendo com que crianças imigrantes precisassem aguardar pelo procedimento durante anos. “Para eles, isso era um grande problema, por uma questão de pertencimento à comunidade. Implicava no reconhecimento da própria religião”, conta o Tuzzin.
Atendimento médico e odontológico
A partir da observação do cenário que era apresentado pelas lideranças dos povos imigrantes em reuniões com representantes da UFFS, a instituição passou a desenhar o projeto de um ambulatório que oferecesse um acesso menos burocrático aos serviços de saúde e atendesse não apenas as demandas clássicas de saúde, mas também as necessidades específicas dos estrangeiros que residiam na região. Em parceria com o Hospital São Vicente de Paulo (HSVP) e a 6ª Coordenadoria Regional de Saúde (6ª CRS), o projeto começou a ser tirado do papel de modo a atender as demandas mais latentes, incluindo os atendimentos represados para circuncisão, consulta ginecológica e urologia, além de auxiliar os imigrantes no encaminhamento do cartão SUS.
O professor explica ainda que, no início, os pacientes buscavam o ambulatório de forma direta, a partir da indicação das lideranças, e chegavam a vir a pé de outras cidades, devido à falta de dinheiro para pagar pelo próprio transporte. “Quando começamos a perceber mais essa dificuldade, a gente também buscou as Secretarias de Saúde da região e articulamos uma parceria para o transporte dos imigrantes até o ambulatório. Também conseguimos, a partir de 2019, uma parceria com o curso de Odontologia da Fasurgs para prestar atendimento odontológico. Então é um atendimento que vem sendo moldado e ainda está em evolução”, destaca.
Hoje, os atendimentos são realizados aos sábados, das 8h às 12h, absorvendo uma demanda que gira em torno de 30 a 50 pacientes por mês. A equipe é formada por estudantes e professores dos cursos de Medicina da UFFS e de Odontologia da Fasurgs. Eles são responsáveis por prestar o atendimento ambulatorial dos imigrantes e, diante da necessidade, encaminhá-los para a especialidade. O acolhimento acontece na infraestrutura de consultórios do antigo quartel do município, segundo o coordenador acadêmico da UFFS.
Tradutores auxiliam na comunicação
Nos casos em que o paciente não fala nenhum idioma em comum com os profissionais da saúde, os atendimentos são acompanhados ainda por um tradutor, que pode ser tanto um membro da própria família, quanto um representante disponibilizado pelas associações de imigrantes existentes no município, em um acordo firmado desde o início entre o ambulatório e as lideranças dos povos imigrantes. “Esse é um dos grandes diferenciais do nosso ambulatório e significa o acolhimento na prática. Eles se sentem acolhidos e ficam seguros para retornar ao ambulatório quando necessário. Assim, conseguimos criar uma lógica de saúde preventiva e acompanhamento longitudinal desses imigrantes”, ressalta o professor.