Numa quinta-feira muito fria, 26 agosto de 1965, Jorge Luis Borges, que ainda não estava totalmente cego (mas quase), deu os ares da sua graça em Santa Fé, capital da província argentina de mesmo nome. Chegou sozinho. Veio de ônibus desde Buenos Aires e não de trem, como registrou Adolfo Bioy Casares no seu caudaloso diário sobre Borges (1680 páginas). Também não ficou cinco ou 10 dias e nem estava acompanhado de Maria Esther Vázquez, como insinuou Roberto Alifano. Pelas datas do diário de Bioy, apesar de outras menções a cinco dias, foram dois dias. Tempo mais do que suficiente para o escritor, atendendo ao convite do professor de literatura do Colégio Imaculada Conceição, Jorge Mario Bergoglio, proferir uma conferência sobre literatura gauchesca, conversar com os estudantes e marcar, indelevelmente, a memória de muitos deles.
A fotografia da recepção de Borges no Imaculada Conceição, desde que veio a público, em 2014, suscitou especulações. Na imagem, além do escritor, aparecem os professores Jorge González Manent e Jorge Mario Bergoglio, que atualmente atende pelo sugestivo nome de Papa Francisco. Eis as razões: que fazem Borges e o Papa Francisco juntos? Eles eram amigos? Como foi a estada de Borges em Santa Fé? E os desdobramentos daquele encontro?
Há ainda a cena emblemática, retratada pela série da Netflix “Pode me chamar de Francisco”, em que aparece o então professor de literatura Jorge Mario Bergoglio barbeando o escritor no pátio da escola. A cena é fictícia, frise-se. Mas é fato que o atual Papa, por ocasião dessa visita de Borges a Santa Fé, foi barbeiro do escritor.
Borges ficou hospedado no Hotel Ritz. Na manha seguinte, os professores Manent e Bergoglio foram buscá-lo no hotel. Bergoglio subiu até o quarto do escritor e demorou mais do que se supunha razoável para voltar. Quando retornou, Manent, dissimuladamente, perguntou o que havia acontecido? E, como resposta, também dissimulada, recebeu essa: “O velho me pediu que o barbeasse.” Não era um enredo borgeano, mas, nesse, dia Borges teve o Papa como barbeiro. Eis a cena real que os diretores da série da Netflix, poeticamente, recriaram.
Edna Aizenberg, no ensaio “Borges, Bergoglio and Cuentos originales. Historia de un prólogo y 14 ficciones”, publicado na revista Variaciones Borges (n.37, p.207-217, 2014), fez a mais completa coleta de informações e análise desse encontro Borges e Bergoglio, que eu conheço.
Dentre os estudantes que vivenciaram o encontro Borges e Bergoglio, Edna Aizenberg conseguiu contato com Jorge Milia (jornalista e escritor), José Hernán Ciblis (músico radicado na Alemanha), Rogelio Pfirter (diplomata e embaixador da Argentina no Vaticano durante o papado de Francisco) e Ubaldo Pérez-Paoli, entre outros. Milia, com ironia e afetividade, rotulou Borges de “Viejo Zorro” (Raposo Velho) e afirmou que ter o escritor dando aulas de literatura gauchesca para estudantes do ensino médio é como assistir a Filarmônica de Berlin tocando Feliz Aniversário em festa de criança. Pfirter e Pérez-Paoli se lembram da crítica de Borges ao artificialismo do senador José Hernández em Martin Fierro, com o seu clássico “Hernández no conocía el campo...”.
O livro “Cuentos originales” foi um legado desse encontro Borges e Bergoglio. Jorge Luis Borges ouviu a leitura dos contos escritos pelos alunos de Bergoglio e se prontificou a levá-los para Buenos Aires. Assim nasceu “Cuentos originales”, com prólogo assinado por Jorge Luis Borges em 7 de outubro de 1965. No seu peculiar estilo, Borges escreveu: “(...) É verossímil que algum dos oito escritores, que aqui se iniciam, chegue à fama e, então, os bibliófilos buscarão este breve volume à procura de tal ou qual assinatura, que não me atrevo a profetizar”.
A premonição de Borges, em parte, se confirmou: o livro “Cuentos originales” (Cuentos originales. Introducción Jorge Luis Borges. Santa Fe: Castellví, 1965; 2nd ed. Salta: Maktub, 2006.) virou obsessão de bibliófilos, não pelos alunos, mas sim pelo professor que se tornou o sucessor de São Pedro.