OPINIÃO

Uma sociedade intemperizada

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Mais do que uma modernidade líquida, na acepção de Zygmunt Bauman, nesse começo de século XXI, sobressaem-se tempos de uma sociedade intemperizada. E se o processo do intemperismo, levado a cabo por agentes meteorológicos e biológicos, é capaz de causar a degradação física e química dos minerais que constituem as rochas, tudo indica que, no tocante à humanidade, ao longo da evolução, algo similar, todavia numa esfera intangível, também se passou. Especificamente, no que diz respeito a não dar o devido valor ao princípio da dignidade da pessoa humana, a não dar importância a virtudes, sejam elas cardeais (as fundamentais, como a justiça) ou teologais (a fé, a esperança e a caridade), e, acima de tudo, no universo dos sentimentos, ao deixar que a fraternidade e a empatia cedessem seus postos para congêneres menos nobres. O pior é que isso acontece no dia a dia de cada um de nós e, na maioria das vezes, não nos apercebemos.

Quem um dia leu, e admitamos, para a construção da nossa hipótese, que isso foi há bastante tempo (antes da popularização das redes sociais pelo menos), a distopia de George Orwell, 1984, talvez, jamais tenha esquecido a Cerimônia do Ódio. Aquela de apenas dois minutos diários, que o Grande Irmão concebeu para consolidar a união do povo. Para isso, o rosto do “desprezível” Emmanuel Goldstein, todos os dias, quando surgia na tela, não se fazia necessário mais do que 30 segundos para o público começar a exarar todo o seu ódio, com cusparadas e xingamentos de “porco! porco! porco!”. E se dois minutos por dia, na ficção de Orwell, eram mais do que suficientes para gerar uma catarse coletiva de ódio, imagine, atualmente, o efeito que tem, sobre muita gente, o consumo na palma da mão, nos seus aparelhos celulares, quase 24 horas por dia, de vídeos/áudios/textos que propagam fake news produzidas com técnicas de Inteligência Artificial e destilam ódio sobre tudo e sobre todos, especialmente sobre os que são diferentes (as ditas minorias) ou que, politicamente, defendem pensamentos divergentes.

Vivemos tempos de maus vencedores. Quem se iludiu, na última terça-feira (21), durante celebração ecumênica na Catedral Nacional de Washington, que a pregação da sacerdotisa da Igreja Episcopal, Mariann Edgar Budde, em prol da comunidade LGBT+ e dos imigrantes irregulares nos EUA, ao apelar em nome de Deus, pudesse despertar algum nível de empatia no recém-empossado presidente Donald Trump, teve suas expectativas frustradas. Donald Trump pode ter muitas virtudes, certamente as têm, pois, pela segunda vez, democraticamente, foi conduzido à presidência da nação mais importante do mundo. Mas, empatia não faz parte do seu vocabulário. E, tudo indica, o Deus que Trump tanto faz referências, não é o mesmo Deus da sacerdotisa Mariann Budde. Ela apelou em nome de um Deus acolhedor. E Trump parece seguir um desses Deuses rancorosos e vingativos do Antigo Testamento, que alguns pastores neopentecostais usam e abusam para atemorizar os féis seguidores das suas Igrejas.

Apologistas da discórdia não faltam, enquanto cresce a intolerância no mundo. Uma época em que, nas redes sociais, pululam, prós e contras, discursos laudatórios, na forma de vídeos, áudios ou textões, sobre xenofobia, colonialismo, racismo, sexismo, homofobia, transfobia e muitos outros desse mesmo tipo, até o especismo, quando entra na pauta o direito dos animais e a relação humana com esses passa a ser questionada. A paixão justiceira se sobrepõe à Justiça. As redes sociais viraram tribunais de exceção em que julgamentos sumários, sem o devido rito do contraditório, arrasam reputações com base em supostas “provas” nem sempre verdadeiras. Inimigos imaginários são criados à mancheia no ambiente virtual. Uma realidade paralela, na qual muitos se orgulham de viver, embora, não raras vezes, sem se dar por conta que não passam de massa de manobra de algum poderoso de plantão. Um universo onde os princípios de civilidade há muito deixaram de vigorar.

Infelizmente, os indícios de que tempos melhores virão são poucos. A esperança é que, assim como o intemperismo, na escala de milhões de anos, consegue transformar rocha bruta em solo fértil, quem sabe esse “intemperismo” dos valores e sentimentos, que ora assola a humanidade, também não acabe, ao estilo schumpeteriano, pela via da “destruição criativa”, forjando uma nova sociedade.

SUGESTÃO DO COLUNISTA: O livro “El Niño Oscilação Sul – Clima, Vegetação e Agricultura” está disponível para download gratuito: https://www.embrapa.br/en/busca-de-publicacoes/-/publicacao/1164333/el-nino-oscilacao-sul-clima-vegetacao-e-agricultura

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